terça-feira, 30 de setembro de 2008

A Modernização no Brasil como Problema Filosófico

Aos 200 anos da transferência da Corte Portuguesa
para o Rio de Janeiro


O Centro de Filosofia Brasileira do Programa de Pós-graduação em Filosofia-PPGF da UFRJ realizou, com patrocínio do PPGF, do Convênio BB-UFRJ e da CAPES, nos dias 23-24/09/2008, o segundo encontro anual do Seminário Farias Brito em torno ao tema “1808-2008: A Modernização no Brasil como Problema Filosófico". A Conferência Farias Brito coube ao Prof. Dr. José Esteves Pereira (Universidade Nova de Lisboa).

Local: Instituto de Filosofia e Ciências Sociais-IFCS
Largo de São Francisco de Paula, 1
Sala Celso Lemos (3º Andar).
20051-070 Rio de Janeiro-RJ
Telef.: (021) 2224-6379

Programa
23/09/2008 (terça-feira)
10:45 Abertura
11:00 Conferência Farias Brito: “1808 e a Modernização da Filosofia no Brasil: Silvestre Pinheiro Ferreira”
Prof. Dr. José Esteves Pereira (Universidade Nova de Lisboa)
13:00 Intervalo
15:00 “As Reformas Pombalinas da Educação: Luís António Verney e o Iluminismo Francês”
Prof. Dr. Amândio Coxito (Universidade de Coimbra)
16:00 “As Idéias Liberais no Brasil nas Primeiras Décadas do Séc. XIX”
Prof. Dr. José Maurício de Carvalho (UFSJ)

24/09/2008 (quarta-feira)
10:00 “A Questão da Liberdade na Filosofia de Rousseau”
Prof. Dr. José Oscar de Almeida Marques (UNICAMP)
11:00 “A Idéia de Modernização no Brasil sob o Influxo da Filosofia Política de Rousseau”
Prof. Dr. Luiz Alberto Cerqueira (UFRJ)
13:00 Intervalo
15:00 Mesa-Redonda Multidisciplinar: "1808 e a Construção do Brasil Moderno"
Profa. Dra. Lorelai Kury (História/COC-Fiocruz e UERJ)
Prof. Dr. Marco Morel (História/UERJ)
Prof. Dr. Cláudio Egler (Geografia/UFRJ)
Coordenador: Prof. Dr. Luiz Alberto Cerqueira (Filosofia/UFRJ)

Centro de Filosofia Brasileira-CEFIB
Largo de São Francisco de Paula, 01 - Sala 325 C
20051-070 Rio de Janeiro
Telefone: (021) 2221-0034 - Ramal: 325
Fax: (021) 2221-1470
E-mail: cerqueira@ifcs.ufrj.br

Silvestre Pinheiro Ferreira e a Modernização da Filosofia no Brasil - Conferência Farias Brito

José Esteves Pereira (Universidade Nova de Lisboa)

"Também toda a grande filosofia vem sempre como o resultado final de um desenvolvimento lógico, como a consolidação de uma tradição particular de pensadores que em geral tem suas raízes conhecidas ou ocultas no seu mais remoto passado" ( Farias Brito, O mundo interior)

Notas ao fim do texto


1. O magistério filosófico iniciado por Silvestre Pinheiro Ferreira, provavelmente, em 26 de Abril de 1813, no Colégio de S. Joaquim, no Rio de Janeiro para onde se dirigiu com a família, abandonando Berlim onde desempenhara actividades diplomáticas oficiais e oficiosas, constitui, efectivamente, um sinal de renovo no tratamento dos temas e dos problemas especulativos no espaço cultural luso-brasileiro (http://www.slideshare.net/secret/nG47TyGrKyzpUl).
No Brasil de 1808, nas aulas régias, estaria em vigor o ensino muito pautado pelos compêndios, adaptados, do abade napolitano Antonio Genovesi (1713-1769), expressão de um empirismo mitigado que, certamente, em muitos casos, não deixou de se prolongar como, aliás, aconteceria em Portugal. Quanto ao ensino da filosofia nos seminários católicos pautar-se-ia pelo teor mais tradicional da docência filosófica.
Como nos diz António Paim, no pressuposto de algum investimento modernizante, a verdade é que não havia “qualquer empenho na busca da coerência do empirismo ou de debruçar-se sobre a problemática com que esbarrava essa corrente. Essa é uma questão que somente seria suscitada por Silvestre Pinheiro Ferreira.”[1]
Efectivamente, com a docência e a publicação na Imprensa Régia das trinta Prelecções Filosóficas, sobre a teoria do discurso e da linguagem, a estética, a diceósina e a cosmologia colocadas á venda na loja da Gazeta do Rio de Janeiro, conforme iam sendo ministradas aos alunos[2] assistia-se a um primeiro momento superador da reflexão condicionada pela hegemonia da filosofia natural que a reforma pombalina de 1772 consagrara no ensino universitário. Pinheiro Ferreira, por sua parte, na denúncia que fizera da pouca utilidade do magistério genovesiano quando professor de Filosofia Racional e Moral, no Colégio das Artes da Universidade de Coimbra pretendia, no fundo, romper com o eclectismo sincrético e redutor, marcado por muitas tensões mentais subjacentes que caracterizaram a Ilustração em Portugal não deixando de ser significativo a importância atribuída às Categorias de Aristóteles, que teve o cuidado de traduzir, em português, para apoio da sua docência.
Muitas das ideias filosóficas silvestrinas que estão definidas nas lições ministradas no Colégio de S. Joaquim conhecerão, é certo, uma versão mais desenvolvida e sistematizada em Paris, a partir de 1826, ano em que, na casa editora Rey et Gravier/J.P.Aillaud publica Essai sur la Psychologie. No entanto, as perspectivas globais do pensamento do autor, delineadas no princípio do século, no Brasil, permanecerão, de um modo geral, ao longo da sua vida. O curso teve inequívoca influência e repercussão gerando, entretanto, uma polémica com Hipólito José da Costa no Correio Brasiliense[3].

2
. Mas, para avaliar melhor a modernidade dos problemas filosóficos discutidos, vivamente, nas aulas do Rio por S.P.F. então com 43 anos de idade, é necessário não esquecer o seu trajecto espiritual e a formação que adquiriu na Congregação dos Padres do Oratório, em Lisboa, no Convento das Necessidades, na década de oitenta do século XVIII. O jovem Silvestre, destinado á carreira eclesiástica, foi discípulo do Padre Teodoro de Almeida(1722-1804)
[4] pensador que prolongava o brilhante preceptorado do P. João Baptista(1705-1761) voltado para a " restituição" do "Aristóteles" da Física, "estragado" pelas várias leituras escolásticas, ao mesmo tempo que procedia ao debate das teses cartesianas, incorporava o atomismo gassendista e anunciava Newton. Todas essas questões, presentes nas aulas de fins da década de 30 viriam a ser melhor explicitadas na obra Philosophia Aristotelica Restituta et Illustrata qua experimentis qua raciociniis nuper inventis (1748)[5] a que Silvestre, por certo teve acesso.
Entretanto, Silvestre abandonará o Oratório. As razões que se apontam para a sua decisão, poderão ser a da falta de vocação para o estado eclesiástico ou, talvez, momentânea crise espiritual, como suponho ter acontecido. Mas o abandono do claustro pode ter a ver, em parte, também, com a discordância relativamente a algumas ideias do seu mestre Teodoro de Almeida e às orientações gerais da filosofia que eram seguidas na Congregação.
O que é líquido, é o facto de, no ambiente néri, ter o jovem Silvestre a possibilidade de ler e discutir muitas questões da filosofia natural que, aliás, o interessarão sempre. Na década de 90, a leitura de Condillac constitui, por seu turno, um desafio ao cânone em que fora formado. As posições críticas que Pinheiro Ferreira não deixará de tomar, em relação ao filósofo francês, não diminuem o impacto das concepções deste, quer na elaboração gnoseológica, quer na implícita preocupação por uma teoria de linguagem, bem patente nas Prelecções. A sugestão teórica de sistema, na economia do seu labor especulativo, poderá ser, também, condilaquiana como acontecera, uma década antes, com o jus-economista Joaquim José Rodrigues de Brito[6] explicitamente avesso ao transcendentalismo kantiano que conhecera pela divulgação de Charles de Villers.
Entretanto, Silvestre Pinheiro Ferreira, em 1798 e 1799, tem oportunidade de visitar e trocar ideias nos principais centros culturais e políticos da Europa, em efervescência política e mental, acompanhando os cultíssimos aristocratas António Araújo e Azevedo, futuro Conde da Barca(1754-1817) e o Morgado de Mateus, D. José Maria de Sousa Botelho Mourão e Vasconcelos (1758-1825), Depois, entre 1802 e 1807, já como diplomata, enquanto encarregado de negócios na Prússia, assiste ao desenvolvimento do idealismo alemão. Foi inevitável, então, o confronto das suas concepções gnosiológicas e a temática da linguagem, com os " heraclitos da Alemanha" como caracterizará Fichte e Schelling, que teve oportunidade de ouvir. Tendo com o referência Kant, contemporâneo do processo final da libertação do pensamento alemão dos quadros estreitos e formais do wolfianismo, a posição filosófica de raiz sensualista, embora moderada, de S.P.F., que se pretende continuador de Aristóteles, Bacon, Leibniz, Locke e Condillac afastam-no, quer do transcendentalismo kantiano que não terá compreendido, quer do idealismo, quer, mais tarde, e por idênticos motivos, dos eclécticos franceses. Importa, todavia, não perder de vista que, o apreço demonstrado, não só pelas lições dos filósofos naturalistas, com quem mais directamente privou, Karstens e Werner mas, também, pelas sistematizações de Lineu, denotam um posicionamento que explica o seu distanciamento em relação ao que considera em Kant, Fichte e Schelling, fragilidade de discurso e de conceptualização. A desvalorização a que procede do discurso de Fichte e Schelling deve entender-se, acima de tudo, como uma crítica à insuficiência, naqueles pensadores, de uma linguagem filosófica bem construída. Na perspectiva ontognosiológica de Pinheiro Ferreira, o que mais o motivava era, precisamente, uma rigorosa nomenclatura dos factos experienciados, necessários a uma sistematização capaz e a uma teorização adequada que viabilizasse um bom método de análise para os vários domínios do saber. Julgamos que, S.P.F., quando chega a Berlim tem já ideias bem assentes sobre a problemática gnoseológica a que adere marcadas, entretanto, pela influência do sensualismo de Condillac, temperado pelo empirismo lockeano. Assim se percebe que, nas Prelecções Filosóficas, surja com alguma frequência, não só a referência aristotélica mas; também, as valiosas contribuições para uma linguagem apurada dos diferentes ramos de ciência que se encontram em Lineu, Werner, Karstens, Hoffmann, Hauy, José Anastácio da Cunha, Francisco Simões Margiochi, entre alguns outros. Quando, a propósito de Kant, ou da sua escola, dizia que ela se explicava por dois pontos cardeais "dar a antigas palavras novas e arbitrárias acepções e revestir de nomes novos ideias triviais"[7] percebe-se que a injunção crítica silvestrina é perspectivada através das exigências de constituição de ciência (da matemática à teodiceia). De facto, o posicionamento de Pinheiro Ferreira, relativamente à organização dos factos da experiência está nos antípodas do transcendentalismo de Kant. A partir de 1814, S.P.F., começa a ser ouvido, entretanto, em matérias de Estado, depois de algumas reservas da Corte relativamente ao antigo diplomata. Escreve, a pedido do Príncipe Regente, umas Memórias políticas sobre os abusos gerais e modo de os reformar e prevenir a revolução popular. A intensa especulação e crítica às formulações jurídico- constitucionais do liberalismo conduzirão o autor, mais tarde, a uma análise atenta, quer do jusnaturalismo mais avançado, quer das concepções utilitaristas de Bentham, em obras como o Précis d'un Cours de Droit Publique Interne et Externe, de 1830 e o Manual do Cidadão em um governo representativo, de 1834, ambas publicadas em Paris e cuja importância para a formação da mentalidade liberal brasileira e de uma teoria consequente da representação de interesses tem sido devidamente salientada a partir dos estudos de António Paim e muito presente, também, nas análises de Ricardo Velez Rodriguez e de José Maurício de Carvalho.

3
. A estruturação do pensamento de S.P.F. tem que ser entendida tendo por pano de fundo a desvalorização da lógica formal de signo aristotélico que encontrara nos meios oratorianos terreno favorável às disquisições entre escolásticos e aristotélicos recentiores sobre a significação de "física" e de "metafísica" que virá a revelar-se por alguma disparidade em torno do conceito de "real". Ao travejamento ontognosiológico do "sistema" de Pinheiro Ferreira, importava, sobretudo, a teórica da linguagem, a revivescência e purificação da retórica e à definição sintáctica e pragmática do discurso. É necessário ter em mente que, foi perante o efectivo impasse de mediação discursiva, verificada a inútil pretensão harmonizadora dos novos raciocínios e experimentos, (o cientismo, portanto) e a antiga filosofia de Aristóteles (através do desenrolar tardio, e pouco brilhante, da outrora luminosa Segunda Escolástica) que S.P.F. persegue um fundamentação de base empirista, na esteira de Locke e de Condillac. Esta fundamentação virá a ser subsequentemente elaborada pela atenção devida ao papel do entendimento que julga e raciocina, a partir dos dados sensoriais. Houve, assim, uma utilização modernizante de Aristóteles em S.P.F..
A importância atribuída às Categorias de Aristóteles, considerando-as imprescindíveis para o acompanhamento das Prelecções Filosóficas (o texto de aulas práticas, por assim dizer) prende-se, essencialmente, com a exigência de "discorrer com acerto e falar com correcção”[8], recuperando, por essa via, o cânone aristotélico da retórica, no sentido de criar nomenclatura precisa para os factos da ciências que, no seu tempo, procuravam constituir-se. A própria definição de substância é, em Pinheiro Ferreira, não o suporte ontológico das qualidades das coisas, mas o complexo de qualidades dada pela experiência sensível e posteriormente combinadas ou sistematizadas. Poderemos afirmar, pois, que S.P.F. solicita o discurso aristotélico para o estudo das noções gerais que são comuns a todos os conhecimentos humanos, adequando as categorias aristotélicas (reduzidas à substância, à qualidade e à relação) a uma metodologia expositiva (ordenada e sistematizada) do conhecimento: “As categorias dão-nos a distribuição sistemática das palavras que serve de base a todas as ciências em geral e; particularmente, à gramática e à filosofia de qualquer língua, bem como aos princípios elementares da Arte de Pensar[9].
A estratégia discursiva silvestrina tem, como um dos seus objectivos fundamentais, o enriquecimento da nomenclatura integradora das ideias e das analogias efectivas com os objectos a que as ideias se reportam. Por outro lado, o seu discurso ontológico é indissociável do problema do conhecimento, tanto quanto o é de uma teoria da linguagem, no horizonte de uma Mathesis Universal, de uma Pasigrafia. Na obra de alguns dos autores que se dedicaram ao estudo do pensamento de S.P.F. encontramos problematizada a questão da ontologia na economia do seu discurso filosófico. António Paim, salientando o relevo que Pinheiro Ferreira dá à linguagem, em sinal de um regresso a Aristóteles, "prescindindo de toda a tradição escolástica, "aponta o conhecimento e a sua ordenação como polos através dos quais se estabelece a necessária solidariedade entre realidade e linguagem, entre os planos ôntico, lógico e gramatical"[10]. Quanto a António Braz Teixeira, acentuará o ponto de partida especulativo de Pinheiro Ferreira centrado no problema da origem das ideias de base sensista e no primado gnosiológico da reflexão do filósofo[11]. Por seu turno, Nady Moreira Domingues da Silva, refere o papel auxiliar da ontologia no que toca à centralidade da questão gnoseológica[12]. E, Maria Luísa Couto Soares, interpretando a utilização silvestrina das Categorias do estagirita, chama a atenção para o paralelismo entre o plano ontológico dos objectos, o plano lógico do pensamento e o plano linguístico das palavras[13].
Para a clareza e distinção das ideias moldadas num discurso rigoroso exige-se, portanto, para o autor das Prelecções, que se estabeleça um nexo coerente de constituição e fundamento dos saberes ao nível do pensar, do ser e do comunicar.

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. De facto, para o nosso pensador conhecimento e linguagem são indissociáveis. Pelas sensações (ou pelas ideias quando o objecto está ausente) apuram-se os factos, organizados em nomes e frases, constituindo- se, por essa via, uma Nomenclatura que virá a ser desenvolvida em Sistema, Teoria e Método. O ponto de partida filosófico é o do senso comum. Dirá, em 1839, nas Noções Elementares de Filosofia Geral, que apresenta a “filosofia do senso comum dos homens, exposta na linguagem singela da razão hu­mana”
[14]. Mas, a pretendida depuração discursiva exige todo um processo de inteligibilidade que busque o assentimento de princípios susceptíveis de aplicação, a partir de observações que nos permitem conhecer os objectos individuais e os estados individuais de cada um deles: os factos.
Esta presencialidade do facto é, também, presencialidade discursiva. Há correspondência proporcional entre as ideias e as palavras. A homologia de pensamento e linguagem desenvolve-se na organização de pensamento silvestrino através de complexidade crescente. É com base na enunciação clara e distinta dos factos, que se acede às instância organizativa do sistema. Pelas observações individuais dos objectos que vamos acumulando verificamos que eles se dispõem por si mesmos no nosso espírito. O sistema vem a ser a agrupação dos factos por classes, ordens, géneros, famílias e consequentes subdivisões[15]. Todavia, como afirma, conhecer um grande número de factos ou possuir uma nomenclatura rica e saber classificar os objectos em sistema não é suficiente. É necessário, através da teoria da ciência, vincular os factos já sistematizados ao conhecimento da causa, da razão e do efeito dos fenómenos. Atinge-se então, no processo de conhecimento e de constituição do saber, o nível de um sistema regido por princípios e passível de permanente revisão:
"Não basta pois ter edificado é preciso também saber como se edificou, depois de advertidos os acertos e os erros é preciso conhecer como se podem emendar estes e aperfeiçoar aqueles. O complexo destas doutrinas compreendem o que eu designei com o nome de método"[16].
Dada a importância que o problema do Método assume, justifica-se que ele se identifique com a filosofia da ciência, No índice recapitulativo que acompanha a obra, Pinheiro Ferreira virá a apresentar uma definição integradora e constitutiva de Filosofia enquanto "reunião das doutrinas que constituem o Método geral e comum a todas as Ciências"[17].
Nesta hierarquização de um processo constitutivo do discurso filosófico, a ciência, na sua designação mais universal, aparece inserida no estudo das faculdades do espírito e das propriedades dos corpos. As primeiras inscrevem-se no terreno da Psicologia para a qual é necessária uma Teoria das Sensações que abranja todas as doutrinas que tem por objecto as Faculdades do Espírito. Quanto à propriedades dos corpos, que se inscrevem na esfera das Ciências Físicas há que distinguir entre a abordagem das propriedades dos corpos sem formarem a sua existência, isto é, sem experiência, e aquelas que estão para além da pura possibilidade hipotético-dedutiva da Matemática. Teremos assim que distinguir, nas Ciências Físicas, entre as Ciências Matemáticas e a Cosmologia que exige a consideração de um Sistema Geral do Mundo.

5
. Do estudo sobre os corpos e as suas propriedades Silvestre passa, depois, a cuidar da ciência, enquanto ciência da alma. A Ciência que tem por objecto as faculdades do espírito, desenvolver-se-á através da Ideologia, da Gramática, da Etologia e da Estética, importando sublinhar o que no autor, a propósito, corresponde à sensibilidade e à espontaneidade, tema essencial para a compreensão da sua especulação que beneficiaria de aprofundamento no seu longo exílio parisiense posterior a 1823.
"No exercício da sensibilidade ou o que vale o mesmo, da faculdade de sentir, a alma é puramente passiva; porque o que nela se passa, é efeito dos movimentos que se operam nos nossos órgãos internos ou externos. No exercício da espontaneidade ou, o que vale o mesmo, da força motriz que a alma exerce sobre o corpo ela é activa. O complexo destas duas faculdades que o espírito e o corpo possuem de obrar um sobre o outro é o que se chama "união da alma com o corpo"[18].
Este ponto da meditação silvestrina, como bem notou Nady Moreira Domingues da Silva, é crucial "justamente pelo facto de, ao colocar como duas faculdades do espírito, a sensibilidade e a espontaneidade poder vir a estabelecer coerência no seu sistema e vincular o conhecimento à moral, além de o ter subordinado à experimentação"[19]. Como importante é, também, atender, a este propósito, que todas as faculdades do espírito se reduzem a pensar ou desejar, enquanto diferentes modos de sentir. Daqui decorre que o bom, o justo e o agradável por um lado, e o belo por outro, são os objectos dos nossos desejos. Quanto aos três primeiros, inscrevem-se numa teórica da virtude ou Diceósina. Quanto ao segundo aspecto, constituem-se através de uma Teórica do Bom Gosto ou da Estética. A Diceósina, enquanto espaço de análise axiológica está considerada de tal modo, que não se reduza ao tratamento puro da Ética. Tomando em consideração uma releitura de Platão e de Aristóteles, a esfera de reflexão proposta diz respeito às virtudes genéricas e comuns a todos os estados que se poderiam inscrever na ética, enquanto definida como tratado das virtudes e dos vícios, independentemente das considerações sociais[20]. Por extensão e aprofundamento é na Diceósina que se trata da filosofia dos deveres do cidadão e das sociedades. No que concerne à Estética, S.P.F. não lhe atribui estatuto autónomo inserindo-a, antes, dentro do paradigma corrente da imitação. As Belas Artes "excitam no nosso ânimo as sensações e ideias, que excitariam os próprios objectos, se presentes fossem, que é o que se chama imitação da Natureza"[21]. Compreende-se, assim, que o problema da estética deva ser tratado no contexto dos pressupostos gnosiológicos genéricos da especulação silvestrina:
"As Artes do Desenho Pintura Gravura Escultura Arquitectura, Música, Mímica Poética e Eloquência as quais todas se compreendem debaixo do nome de estética sempre foram denominadas de Belas Artes; mas nem sempre os Filósofos conheceram que a teórica de todas elas derivando de um só princípio constituía uma parte tão essencial da Psicologia como da Arte de Pensar"[22].

6
. Na arquitectura da especulação silvestrina deparamos, entretanto, com as usas ideias cosmológicas no sentido de uma harmonização de Deus, Homem e Mundo.
O pensamento cosmológico silvestrino apresenta-se amplamente exposto na Quinta Prelecção, sob a égide de Leibniz: "O Presente está prenhe de futuro(...) Qualquer das mónadas, de que o universo se compõe é representativa do mesmo Universo"[23].
A partir do fenómeno das marés, Silvestre Pinheiro exemplifica relações que envolvem a influência do sol e da lua sobre a terra e explicam o processo lento de formação do universo regido por leis através de modos diferenciados. Em cada um dos fenómenos que acontecem em qualquer substância, temos sempre um efeito que tem por causa todas as substâncias do Universo, colectivamente. Esta legalidade e dinamismo expresso em universal harmonia, em que está presente, além do espírito de Leibniz, o de Newton, ajusta-se bem à economia do discurso de sensibilidade monadológica, de Pinheiro Ferreira, apresentando-se, por um lado, a cosmologia como estudo sistemático da fenomenalidade física: "estão pois ligadas entre si, com agentes e pacientes, todas as substâncias do Universo que por este modo vem a formar um Sistema"[24]. Por outro lado, toda a argumentação cosmológica se deduz da Criação, sendo Deus a causa do Universo.

7
. Do plano ontognosiológico Silvestre Pinheiro acede ao plano ético. Embora menos desenvolvidos, porventura, nas Prelecções fluminenses certamente teriam sido aduzidas as questões éticas e teodiceicas. A matriz teológica dos deveres para com Deus e a retribuição divina consoante as virtudes ou os vícios, no plano da salvação, não conflitua, em S.P.F., com a realização colectiva do Bem, expresso numa concepção ética de cariz mais filosófico. Frente ao sentido teológico e finalista, perfila-se uma leitura ética de meios em que contam, sobretudo, os móbeis de acção mas em que, igualmente, o nexo teológico está subjacente, por um viés teleológico. São, portanto, duas as vias subjacentes à fundamentação ética.
O problema ético é, porém, indissociável da própria teoria do conhecimento do autor. Como já vimos, S.P.F. não se revê num sensualismo estrito. A faculdade passiva de sentir opõe a força motriz, o exercício activo da alma sobre o corpo. O que não implica, todavia, que nesta indiscernível relação se possa colher uma explicação suficientemente clara no pensador luso-brasileiro. Sem dúvida se distinguem as acções corpóreas das mentais. Se, nas acções corpóreas se distingue o agente e o paciente, já não se passa a mesma coisa nas acções mentais. Não obstante se constatar a disposição do agente e do paciente nem sempre o possível efeito se produz e os espíritos na presença de muitos motivos "obram umas vezes por um, e outras vezes por outros desses motivos"[25]. Por isso são livres. Escolhem e optam. Mas, em todo o caso, como ir desta constatação ao seu fundamento?
Em nota ao parágrafo 156 das Noções, S.P.F. busca uma resolução da aporia, aludindo a alguns pseudo- filósofos que tem pretendido combater a liberdade do homem. Todos eles se fundavam, na sua opinião, na falsa definição que se costuma dar de liberdade, ou seja, o poder de agir ou não, segundo a nossa vontade. A liberdade seria a faculdade de nos determinarmos na presença de vários bens por aquele que nos agrada mais. Ora, o que o filósofo português pretende contestar é que haja um objecto externo que condicione as nossas opções. A experiência de cada um atesta, pelo contrário, que na presença de vários motivos, ora optamos por um, ora por outro, sem se poder assinalar objecto algum externo que seja causa das nossas determinações.
A escolha racional e volitiva entre o bem e o mal talvez ganhe mais visibilidade, ainda, se tivermos presente o interesse que o problema suscitava, nomeadamente junto dos "ideólogos" franceses. Maine de Biran e Destutt de Tracy cujas obras S.P.F. conhecia bem, mas que apreciava, com reservas, referem--se à indiscernibilidade da liberdade e da vontade[26]. Ora o que se verifica no pensamento silvestrino é, justamente, a permanente aporia que resulta dessa mesma relação de liberdade e de vontade. Sigamos o filósofo. As escolhas que fazemos como actos da nossa vontade podem considerar-se como "efeitos cuja razão reside na alma; ou como efeitos cuja razão existe nos corpos"[27]. Para Pinheiro Ferreira, apenas para a origem corpórea dos actos é preciso um maior cuidado de análise, já que, no que concerne às escolhas de natureza espiritual, elas se apresentam como acções livres. No que respeita aos actos corpóreos ou se sabe serem eles mesmos efeitos "de que a alma foi agente"[28] e então serão também actos livres, ou "aquele Estado dos corpos, a que essa vontade ou essa escolha se seguiu, é efeito cuja razão não existiu na alma, mas no nosso ou em estranhos corpos; e então diz-se, que essa vontade, essa escolha, foram constrangidas, forçadas, violentadas ou necessárias"[29].
O problema remete-nos, à união da alma com o corpo. O que acabará por ser possível nesta relação unitiva é, apenas, enumerar mudanças, no corpo e na alma, embora seja possível a remissão retroactiva para uma fundamentação que converge, no fundo, para Deus.
Na busca do fundamento de acção os respectivos móbeis (que importarão, sobremaneira, ao seu utilitarismo político, configuram uma via teleológica de pensamento que explica também, de certo modo, quer a sua confiança reflectida nos valores liberais, quer o distanciamento relativamente a posições marcadamente providencialistas. No cerne da reflexão ética silvestrina, deparamos com a fecundidade de um pensamento que tem que ser visto, no fundo, através das tensões entre a Fé e a Razão que marcarão, significativamente, todo o século XIX.
Entre as Prelecções Filosóficas fluminenses e a meditação parisiense, com idênticos propósitos pedagógicos, podemos contextualizar uma reflexão em que se procura, tanto a conciliação possível de imanência e transcendência, como a abertura para a compreensão de atitudes individuais e sociais superadoras, quer do estéril formalismo dos direitos individuais, quer do amor próprio excessivo ou do egoísmo.
Mais reconfortante, ainda, é o facto de S.P.F. admitir, desde o início do seu discurso especulativo, que se pode entregar à Filosofia a direcção do espírito humano.

8
. Para terminar, assinalando os sinais de modernidade que transparecem das prelecções silvestrinas, permito-me chamar a atenção para as suas ideias económicas que os alunos tiveram oportunidade de conhecer nas aulas de S. Joaquim e estão expostas na Trigésima Prelecção. Mesmo que passível de posterior desenvolvimento e mais clarificação, tarefa a que Pinheiro Ferreira se devotaria mais tarde, não deixa de ser assinalável a amplitude de problematização filosófica que o económico lhe mereceu nas lições do Rio e a que brevemente aludirei aqui.
Mas, antes de mais, cumpre dizer que de modo algum se poderá considerar a abordagem silvestrina do económico, no tempo em que ainda não se definira solidamente o campo da economia política, como totalmente deslocado do âmbito dos interesses da filosofia e da filosofia moral, em particular.
No sentido abrangente da Diceósina, enquanto filosofia dos deveres do cidadão e das sociedades, Silvestre articulou a sua doutrina com uma meditação renovada dos temas jusnaturalistas, dissertando sobre a felicidade e a civilização. A felicidade dos povos, na linha sensualista das suas coordenadas ontognosiológicas, resulta de um cálculo susceptível de fornecer a suficiência dos meios, quer para suprir a dor, quer para aumentar os prazeres. Os ricos e opulentos serão aqueles que são capazes de remover os males e multiplicar e variar os gozos. E assim como acontece na vida dos homens, também as nações vão adquirindo novas necessidades, sendo preciso verificar até que ponto as podem satisfazer ou não.
A imbricação moral na abordagem do económico encontra-se bem expressa nas considerações que faz sobre a civilização que não tem que se identificar, necessariamente, com riqueza, pois esta está, sim, relacionada com situações de maior ou menor dependência. A dependência, ou melhor, interdependência, que é inerente às relações entre as nações não significa, todavia, o mesmo para as nações pobres e para as nações ricas. Há, por isso, um conjunto de princípios que permitem estabelecer o mínimo de dependência tendente a tipificar as condições em que uma nação pode impor leis de mercado. Em primeiro lugar, não se deve estar dependente de nenhuma outra nação em produtos essenciais. Em segundo lugar, não se deve depender de outras nações em produtos de menor interesse, se houver desvantagem comercial. Em terceiro lugar, é necessário privilegiar as nações que nos comprem mais produtos quer agrícolas, quer industriais. Dadas as condições reais em que se desenvolvia a situação portuguesa, a partir do Brasil, e na altura em que A Riqueza das Nações, de Adam Smith era bem acolhida, os alunos de S.P.F. descobriam uma pedagogia do económico que corroborava a política de abertura ao comércio internacional, salvaguardando, em tudo aquilo que não que fosse realmente adequado, algumas medidas proteccionistas.
Muito significativo na abordagem da economia é o relativo aprofundamento que faz da teoria do valor ao considerar o apreço (isto é a utilidade) e o trabalho. Mas, nem sempre, a seu ver, o objecto em venda custa trabalho atendendo a que pode depender exclusivamente do apreço. Esta situação traduz-se, para o filósofo, em valor primitivo, sendo o valor acessório resultante do trabalho necessário para a sua prontificação até ao mercado. A posição metódica silvestrina sobre a fortuna crítica e prática da fisiocracia e da economia política que vinha sendo construída na esteira do pensamento smithiano, é a de um certo distanciamento quanto à pertinência de uma em desfavor da outra. Percebe-se, sobretudo, que há uma demarcação evidente em relação às posições mais tardias do fisiocratismo. Para S.P.F., na altura em que ensina no Brasil, o que se lhe afigura mais nítido é que os fisiocratas (chama-lhes economistas por antonomásia) teriam expressado uma verdade irrefutável (e dirá, a propósito, que não há verdade inútil) consubstanciada na condição necessária de que o valor de troca de um objecto bruto, no lugar da sua produção, é igual ao apreço tanto do vendedor como do comprador. Mas, por outro lado, não é menos verdade, que o valor de troca de um objecto prontificado, pela mudança de estado ou lugar, é igual não só ao apreço do vendedor e do comprador mas, também, à soma de todos os produtos consumidos na sua prontificação[30].
As subsequentes solicitações de natureza mais política a que Silvestre Pinheiro Ferreira. teve que responder, a partir de 1814, no Brasil a caminho da independência, não o desviariam da linha axial da reflexão filosófica e, sobretudo, de uma fundamentalidade discursiva que foi exigência permanente em todo o campo dos saberes que o interessaram. Nesse sentido, pode dizer-se que se instaurava uma exigência de linguagem e de motivação especulativa que viria a ser protagonizada pelos que no Brasil, que entretanto se proclama independente em 1822, até hoje prosseguem uma meditação filosófica de sentido universal.

Notas
[1] A. Paim, História das Ideias Filosóficas no Brasil, 5ª ed., Londrina, Editora UEL, 1997, p.322.
[2] Cfr. Idem, Silvestre Pinheiro Ferreira no Rio de Janeiro, in “Cadernos de Cultura- Silvestre Pinheiro Ferreira, Lisboa, CHC/UNL, pp.73-82; Idem, Presença de Silvestre Pinheiro Ferreira na estruturação do debate filosófico no Brasil do século XIX, ib, pp. 65-72
[3] O problema teve a ver com a argumentação expendida pelo periódico, a propósito da linguagem invocando o exemplo dos mudos e surdos de nascença para contestar que nesses casos não haveria discurso. Pinheiro Ferreira retorquiu afirmando que a linguagem não se circunscrevia, no seu pensamento, à linguagem das palavras mas comportava, também, a linguagem dos gestos "assim como quando nós discorremos são ideias de Palavras as que se sucedem no nosso ânimo, assim no deles" (surdos e mudos) são imagens sucintas, como as dos Ieroglíficos, que bem como as Palavras representam ideias mais complexas" (Silvestre Pinheiro Ferreira, Prelecções Filosóficas, Introd. de José Esteves Pereira, Lisboa, Imprensa Nacional- Casa da Moeda, 1996, p. 317).
[4] Cfr. Francisco Contente Domingues. Ilustração e Catolicismo: Teodoro de Almeida. Lisboa, Colibri,1994, p.143.
[5] A obra de João Baptista, a que já nos referimos neste livro, consta de um volume de Lógica e outro de Física constituindo o desenvolvimento acurado das questões que foram transmitidas no curso iniciado em 1737 ou 1738. O magistério de João Baptista foi prosseguido com os cursos de Diogo Vernei (1742-1745), de Clemente Alexandri­no(1745 a 1748), ano em que é publicada a Philosophia Aristotelica Restituta. No início dos anos 50 é Teodoro de Almeida que assegura os cursos seguindo-se os de João Barbosa, Rodrigo de Matos, António Soares Barbosa para serem retomados, no tempo em que Silvestre frequenta as aulas dos néris pelo P. Teodoro de Almeida (Cfr. J. S. da Silva Dias, Portugal e a Cultura Europeia, "Biblos", XXVIII(1952)p.348 e ss; A. A. de Andrade, Vernei e a cultura do seu tempo, Coimbra, Universidade de Coimbra,1966, p.19. A convergência do racionalismo e do empirismo e a adopção do atomismo é a tónica dominante do magistério filosófico oratoriano, especialmente no campo de Física.
[6] Condillac é uma referência incontornável para S.P.F. que não hesita em lhe chamar "grande filósofo". Pensamos que, dificilmente, o nosso filósofo estruturaria o seu pensamento superador sem a leitura do autor francês objecto de críticas nas Prelecções e, mais tarde, no ciclo parisiense, em várias notas das suas obras filosóficas.
[7] Joaquim José Rodrigues de Brito, Memórias Políticas sobre a Verdadeira grandeza das nações e particularmente de Portugal, Lisboa, Banco de Portugal,1992, pp. XXII; e p 29.
[8] Silvestre Pinheiro Ferreira, Prelecções Filosóficas, cit., p. 318.
[9] Silvestre Pinheiro Ferreira., ob. cit. p. 35.
[10] António Paim, História das Ideias Filosóficas no Brasil, S. Paulo, Editora Convívio,1987, 4ª ed., p. 263.
[11] ."A maioria dos intérpretes tem iniciado o estudo da obra especulativa do nosso pensador pela ontologia, seja pelo maior amadurecimento e apuro sistemático das Noções em comparação com o carácter desordenadamente coloquial do primeiro livro, seja por entenderem que a ordem de exposição adoptada por Pinheiro Ferreira em 1839 está mais de acordo com o seu próprio pensamento. Quanto a nós, porém, o caminho a seguir deve ser outro, e isto por duas ordens de razões. Em primeiro lugar, porque no pensamento do filósofo a ontologia não é principial, pois que decorre directa e necessariamente de determinada gnosiologia, sendo, além disso, ou precisamente por isso, não uma ontologia do ser- em- si mas do ser dado no conhecimento Depois, por que o que levou Pinheiro Ferreira a inverter nas Noções a ordem que inicialmente adoptara foi, não qualquer intrínseca exigência filosófica do seu próprio pensar mas uma simples consideração pedagógica A. Braz Teixeira, Um filósofo de transição: S.P.F., “Rev. Bras. de Fil.” ,122, Abril- Junho de 1981.
[12] ."Ao colocar como objecto da ontologia aquelas noções comuns à ciência em geral, o filósofo português, na linha sensualista que é peculiar ao seu pensamento, endossa, de certa forma, a crítica empirista à metafísica e atribui à ontologia a função de auxiliar da gnosiologia, retirando-a da ordem do ser e incluindo-a na ordem do saber" (Nady Moreira Domingues da Silva, O sistema filosófico de S.P.F., Lisboa, ICALP, 1990, p.118).
[13] M.ª Luísa Couto Soares, A linguagem como método nas Prelecções.
[14] Silvestre Pinheiro Ferreira, Ensaio sobre a Psicologia, Noções Elementares de Filosofia e outros escritos filosóficos, Lisboa, Imprensa Nacional- Casa da Moeda, p. 182.
[15] Silvestre Pinheiro Ferreira, Prelecções Filosóficas cit. pp. 37-38.
[16] Idem.
[17] Idem, p. 39.
[18] Idem, p. 312.
[19] Silvestre Pinheiro Ferreira Ensaio sobre a Psicologia, Noções Elementares de Filosofia e outros escritos filosóficos, cit., p. 209.
[20] Nady Moreira Domingues da Silva, ob. cit., p. 61.
[21] Silvestre Pinheiro Ferreira, Prelecções Filosóficas cit. pp. 39-40.
[22] Idem, p. 46; e p. 310.
[23] Idem, p. 39.
[24] Idem, p. 61.
[25] Idem, p. 63.
[26] Ensaio sobre a Psicologia, Noções Elementares de Filosofia e outros escritos filosóficos. cit. , p. 242.
[27] "Je pense, avec Locke, qu' être libre c'est avoir le pouvoir d' éxecuter sa volonté, et que toutes les fois qu'on donne un autre sens à ce mot on ne s'entend plus.Il ne peut donc pas y avoir de liberté avant la naissance de la volonté;et il ne pouvait être question que d'éxaminer ce qui fait naitre notre volonté", Destutt de Tracy, Principes d'Idéologie, Paris, Mmme. Ve. Courcier- Imprimeur-Libraire, 1817, t. I, cap.XIII.
[28] Silvestre Pinheiro Ferreira, Prelecções Filosóficas cit. p. 254.
[29] Idem, ib.
[30] Sobre o pensamento económico e social de Silvestre Pinheiro Ferreira ver Introdução aos Textos Escolhidos de Economia Política e Social (1813-1851), Introd. de J. Esteves Pereira, Lisboa, Banco de Portugal, 1996

Luís António Verney e o Iluminismo Francês

Amândio Coxito (Universidade de Coimbra)

O tema que me foi sugerido para sobre ele discorrer (As Reformas Pombalinas da Educação: Luís António Verney e o Iluminismo Francês) compreende, como é manifesto, duas partes. Irei ser breve em relação à primeira.
Verney partiu para Roma em 1736 certamente por causa da insatisfação nele provocada pelo ensino ministrado em Portugal e da consequente necessidade de procurar um lugar onde pudesse obter uma mais sólida formação intelectual no campo das novas ideias. Contudo, nalgumas das suas cartas ele refere ter isso sucedido em virtude de uma incumbência do rei D. João V com o objectivo de se informar em Itália sobre a melhor maneira de reformar os estudos no nosso País. Tal incumbência devemos, porém, considerá-la pouco provável, dada a falta de aptidões de Verney para realizar essa empresa, tendo em conta a sua pouca idade. De qualquer modo, o nosso pensador apresenta propostas de reforma do ensino no Verdadeiro Método de Estudar. Esta obra está organizada em dezasseis cartas, ocupando-se cada uma delas de um dos sectores dos estudos em voga na época. Todas as cartas estão constituídas por duas partes: a parte crítica à orientação pedagógica vigente e a parte de propostas de reforma em todos esses sectores. Relativamente a essas propostas, Verney principia pelos estudos elementares, prosseguindo pelas diversas disciplinas professadas a nível universitário. E o plano era o seguinte: gramática e ortografia da língua portuguesa; gramática latina; latinidade; grego e hebraico; retórica; poética; filosofia (incluindo a lógica, a metafísica, a física ou filosofia natural e a ética), medicina, jurisprudência, teologia e direito canónico.
Poderá perguntar-se se as propostas de Verney sensibilizaram o marquês de Pombal para a reforma dos estudos menores e universitários. Isso é admitido como provável por alguns estudiosos das reformas pombalinas, sobretudo pelo facto de o filósofo português propor a substituição dos compêndios usados pelos Jesuítas, que eram aqueles pelos quais eles leccionavam nas instituições de ensino que possuíam na Metrópole e no Ultramar, nomeadamente no Brasil, onde, na altura da expulsão, os inacianos dirigiam vários colégios, tal como sucedia noutras colónias. No entanto, com a reforma dos estudos menores apenas se substituíram os livros de texto até então adoptados pelos inacianos, permanecendo o plano que estava em vigor.
Tendo ou não influenciado as reformas pombalinas, o certo é que a obra de Verney teve uma eficácia no campo do ensino muito inferior àquela que o autor esperaria. Efectivamente, ao redigir a De re lógica, a De re metaphysica e a De re physica para uso dos jovens portugueses, Verney alimentava a esperança de que esses seus escritos viessem a ser usados como manuais nas escolas para o estudo da filosofia na sequência da orientação pedagógica do Verdadeiro Método. E o nosso filósofo lutou para eles serem adoptados no sistema de ensino em Portugal, mas as suas pretensões não foram coroadas de êxito. Contrariamente, com a reforma pombalina principiou a influência de António Genovesi, e foi mesmo decidida a publicação em latim da sua Lógica e da sua Metafísica na Imprensa da Universidade de Coimbra. O facto de terem sido votados ao desprezo os seus manuais no ensino explica, pelo menos em parte, que nos últimos anos de vida Verney dê a imagem de si próprio como a de lutador derrotado, ressentido e desiludido por se ter empenhado totalmente numa empresa que não conseguiu ver realizada.
De qualquer modo, as obras do autor português tiveram bastante divulgação nos sectores extra-escolares; e, como informa Gama Caeiro num artigo publicado na Revista da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, isso sucedeu também no Brasil, onde elas exerceram influência tanto directa como indirecta.
Mas, pondo de lado este assunto, vou aludir às relações de Verney com o Iluminismo francês.
O Iluminismo é um movimento cultural que pode considerar-se ter principiado com a “crise da consciência europeia” (segundo a expressão de Paul Hazard) no início da penúltima década do século XVII, embora houvesse já antecedentes, tanto próximos como remotos. Esse movimento reflectiu-se também em Portugal, ainda que de uma maneira relativamente modesta. Mas não vou referir-me ao Iluminismo em geral, propondo-me apenas discorrer sobre Verney nas suas relações com o Iluminismo francês. Relativamente a este tema, deve esclarecer-se que os maiores expoentes da Filosofia das Luzes em França não tiveram repercussão no nosso filósofo, tanto quanto permite concluir o estado actual das investigações. Houve, porém, um representante de bastante renome desse Iluminismo que deixou marcas assinaláveis no pensador português. Refiro-me ao jesuíta Claude Buffier, que também exerceu influência em vários outros autores, nomeadamente em Voltaire, nos compiladores da Encyclopédie, em Thomas Reid, talvez em Rousseau e em Condillac e ainda nalguns filósofos escolásticos posteriores.
Buffier foi influenciado por várias correntes filosóficas modernas, em especial pelo cartesianismo e pelo empirismo de Locke, tendo elaborado na sua obra mais importante, Traité des premières vérités, uma doutrina do conhecimento na qual se propõe examinar as proposições que podem demonstrar-se para ascender a partir delas às que não são susceptíveis de demonstração, constituindo, porém, a base de todas as ciências e de todo o juízo correcto. A estas denomina-as o pensador francês “primeiras verdades”. Igualmente, Verney analisa o tema das primeiras verdades (uma questão recorrente no século XVIII), a propósito das verdades do senso comum. Esse tema é examinado no livro terceiro da De re metaphysica, onde o nosso autor declara que a parte principal da metafísica tem como finalidade investigar e expor as proposições gerais ou as primeiras verdades respeitantes a todas as disciplinas, além de fornecer a significação dos nomes de que se servem as ciências e de prescrever as regras para o seu uso correcto. Porém, a metafísica não se circunscreve à linguagem da ciência: ela também examina certas proposições ou juízos unanimemente aceites por todas as pessoas e que são necessários para a condução da nossa vida, constituindo um caso particular de primeiras verdades. É a respeito deste assunto que Verney se inspira directamente em Claude Buffier.
À semelhança de Buffier, o filósofo português define “primeiras verdades” como “certas proposições tão evidentes que não podem ser demonstradas nem refutadas por outras dotadas de maior clareza”. Dito de outro modo, trata-se de juízos gnosiologicamente anteriores a quaisquer outros, cuja verdade é garantida pelo facto de procederem da actividade natural e imediata do espírito. E tais juízos são o fundamento de certas crenças humanas.
Como corolário daquela definição, Verney refere algumas notas distintivas dessas verdades: que sejam de tal modo evidentes que não possam ocorrer outras com maior evidência ou dotadas de maior certeza, das quais elas pudessem deduzir-se; que sejam admitidas por todas as pessoas com tal consenso e convicção que ninguém ou quase ninguém as impugne, uma vez adquirida a razão da espécie humana; que estejam impressas tão profundamente no nosso espírito que não possam ser invalidadas por nenhumas falácias ou por meios astuciosos dos oponentes; além disso, que todos ordenem a sua vida pelas suas prescrições.
São mencionadas por Verney duas fontes das primeiras verdades: o sentido íntimo ou a consciência, e os sentidos com a cooperação da recta razão. Por isso, ele distingue as verdades internas e as verdades externas. Mas para melhor discriminar estas duas espécies de verdades, poderíamos acrescentar (como faz Buffier) que as primeiras consistem na conformidade entre as ideias, enquanto a natureza das segundas reside na conformidade de um complexo de ideias com os objectos exteriores que são representados.
Contudo, de modo análogo ao que se verifica no seu antecessor, o filósofo português dedica-se em especial à análise das verdades externas, que dizem respeito a coisas ou a factos exteriores ao espírito, havendo por isso maior interesse em serem justificadas. Diferentemente, ambos os autores se preocupam muito pouco em fundamentar o valor das verdades internas ou do sentido íntimo, dado não terem opositores dignos de crédito. Por exemplo, o conhecimento da própria existência e da existência dos factos mentais (pensamentos, volições, etc.) não é susceptível de ser posto em dúvida, visto possuir a máxima evidência para todos, sendo, por conseguinte, condição necessária de qualquer outra verdade e de toda a ciência humana. Pode, assim, dizer-se que as verdades internas estão dotadas de uma evidência matemática idêntica à das demonstrações logicamente correctas, motivo por que nem sequer os cépticos as recusam. Está aqui a razão da sobriedade com que Buffier e Verney tratam o tema desta espécie de verdades, dedicando-se sobretudo à análise das verdades externas, que são aquelas que os cépticos não aceitam.
Como eu tinha referido, as primeiras verdades em que há intervenção dos sentidos têm para Verney a garantia da razão. Esta faculdade, enquanto cooperante com os sentidos, é denominada “senso comum” e “voz da natureza”, sendo, portanto, uma disposição natural, como também a havia considerado Buffier. E quando o jesuíta francês escreve que o senso comum é uma disposição natural, pretende significar que se trata de uma tendência estável para pensar que algumas proposições são auto-evidentes ou evidentes por si mesmas. E ele também acentua (como na sua peugada Verney) que essa tendência existe em todos os homens, ou pelo menos na maior parte, “que é manifestamente a mais extensa e a mais numerosa”. Mas ─ podemos perguntar ─ como se justifica que o senso comum é uma disposição natural presente em todos os homens para ajuizar com evidência? Com efeito, aceitando a universalidade do senso comum, corre-se o risco de tomar como norma da verdade a opinião da maioria, não atendendo aos juízos da minoria, designadamente aos juízos dos filósofos e dos especialistas, preferindo o parecer da multidão ao dos espíritos selectos e cultivados.
Para solucionar esta dificuldade, Verney reconhece poder suceder que o senso comum seja em certos casos apanágio de determinadas pessoas se estiverem em condições de ajuizar melhor que as outras sobre assuntos de que têm maior experiência. Por tal motivo, a universalidade do senso comum apresenta-se por vezes drasticamente restringida, manifestando-se essa disposição natural como uma prerrogativa da minoria e em muitos casos apenas dos especialistas. Declara a propósito o filósofo português: “Se em matérias de que tenho conhecimento e experiência verificar que outras pessoas não exercitadas como eu ajuízam de forma diferente da minha, posso legitimamente pensar que elas cometem erro. Se, porém ─ prossegue Verney ─, a maioria delas for versada em determinados assuntos e emitir juízos diferentes dos meus, estamos perante um indício claro e certo de que eu erro, dado não ser possível enganarem-se tantas pessoas com aptidão para ajuizar e apenas eu acertar no alvo”.
Se o senso comum é uma disposição natural, ainda que não implique necessariamente universalidade de facto, quem não for infiel à razão é impossível que não dê assentimento às verdades comuns que a natureza depositou no espírito de todos os homens. Quando isso não suceder a respeito de alguma verdade, devido a qualquer preconceito, os responsáveis devem ser considerados extravagantes. E, se alguém persistir de um modo sistemático numa atitude de rebeldia perante todas as verdades do senso comum, é manifestamente louco. De facto, a extravagância e a loucura são o oposto da razão. Como escreve Buffier, encontramos com frequência pessoas deste género, mesmo entre as dotadas de qualidades eminentes, “pelo que a experiência nos mostra todos os dias um grande louco que é um espírito bem formado, um grande louco que é um homem muito sábio e até a maior parte das vezes um grande louco que é o melhor homem do mundo”.
Mas como explicar que nem todas as pessoas se deixem guiar pelo senso comum? Embora a natureza seja regular nas suas obras, encontramos nela defeitos e imperfeições e até monstruosidades. Disto são em grande parte responsáveis os próprios homens pelo mau uso que fazem da liberdade, o que induz alguns deles a emitir falsos juízos sobre as coisas, constituindo por isso uma excepção relativamente à universalidade do senso comum. Entre as causas do mau uso da liberdade, Verney salienta: a vanglória, que nos induz a pensar e a exprimir-nos de modo diferente dos outros para aparentarmos que somos mais talentosos que eles; a curiosidade exagerada, que nos incita a emitir juízos sobre assuntos que não podem ser investigados pela razão humana; os preconceitos de partido, que ocasionam que permaneçamos obstinadamente vinculados a uma escola, tal como acontece com os pirrónicos e os académicos, que por esse motivo difundiram a dúvida universal; a negligência e a ligeireza em ajuizar, dado que muitas vezes, em virtude de não examinarmos com rectidão um princípio que é o fundamento do sistema, incorremos em erro ao não considerarmos a sequência das proposições evidentes que se inferem desse princípio; a presunção arrogante, que nos coage a depreciar o senso comum por ele manifestar com clareza certas verdades que nos incomodam. Poderíamos então dizer que, se a natureza concedeu o senso comum a todos os homens, nem todos o reconhecem, pelo menos a respeito de certos assuntos relativamente aos quais alguns deles, ao emitirem juízos, se apartam das prescrições “que Deus incutiu no nosso espírito para que todas as pessoas pudessem ajuizar da mesma forma sobre coisas evidentes”.
O filósofo português apresenta nove exemplos de verdades evidentes do senso comum em relação às quais todos estão em condições de ajuizar, acrescentando, porém, não se tratar de uma lista definitiva: tenho uma determinada cor e uma determinada estatura; sou um único homem e não dois; estou dotado de um corpo e de uma inteligência; sou livre, isto é, posso fazer o que desejar sem uma causa que me coaja intimamente; além de mim, existem na Terra outras pessoas; não me criei a mim próprio; não apenas eu, mas também os outros homens, possuímos um corpo e um espírito; tudo o que é realizado com sumo artifício é realizado por uma causa provida de razão; se um grande número de pessoas de são juízo e de crédito incontestável atestar algo não por ouvir dizer, mas em virtude do próprio conhecimento, isso deve considerar-se verdadeiro e confirmado.
Estas verdades não procedem de quaisquer outras, sendo, por isso, conhecidas com absoluta certeza, à semelhança das do sentido íntimo, diferindo apenas destas no modo como a evidência se impõe.
Quanto à lista referida de primeiros princípios do senso comum, Verney destaca o da existência dos corpos exteriores, manifestada pelo exercício dos sentidos e pela “recta ratio”, apresentando exemplos sobre os dados de cada um deles e mencionando casos em que apenas devido a alterações patológicas dos respectivos órgãos não é possível apreender certas qualidades correspondentes.
Os dados dos sentidos possibilitam também conhecer com certeza uma outra verdade do senso comum: a da liberdade humana. O sentimento da liberdade está difundido em todos os espíritos, e todas as pessoas procedem em conformidade com ele. Pela sua parte, declara Buffier que tudo o que possa objectar-se ao juízo do senso comum de que o homem é livre não pode ser expresso por um princípio mais claro e mais imediato que o princípio da liberdade.
Entre as verdades do senso comum possibilitadas pelo exercício dos sentidos, encontra-se ainda a que diz respeito ao testemunho alheio. Efectivamente ─ escreve Verney ─, “o testemunho continuado das pessoas é um sinal, ou um indício, ou um critério da verdade”. Para que esse testemunho seja evidente, exigem-se três condições: que seja relativo a coisas existentes (às “res facti”); que a maioria das pessoas que conhece o assunto possua sobre ele uma opinião idêntica, pois, se elas concordarem entre si, só um insensato ousaria desmenti-las; que não exista nenhuma razão para pensar que quem testemunha é movido pelo ódio, pela paixão, pelo temor ou que por qualquer motivo tem o intento de mentir. A segunda destas condições parece, estranhamente, defender uma teoria segundo a qual não é a correspondência dos juízos com o real que constitui a verdade, mas a coerência dos juízos, pois seria suficiente um grande número de testemunhos que fossem compatíveis entre si para eles serem verdadeiros.
No confronto que venho realizando entre Verney e Buffier, devo salientar que o filósofo português declara serem verdades do senso comum certas proposições em relação às quais o seu antecessor tem um parecer diferente. Considera o nosso autor que a evidência física da existência das coisas materiais é o fundamento das próprias verdades da matemática, propugnando, assim, uma explicação empirista das operações e das leis dessa disciplina. Deste modo, examinando certas demonstrações referentes a números ou a linhas, elas pressupõem em último caso, segundo o filósofo português, a evidência dos sentidos, designadamente na geometria, pois, ao demonstrar-se, por exemplo, que a linha A e o ângulo B são, respectivamente, metades da linha B e dos ângulos A e C de um triângulo, é necessário o sentido da visão. E, admitindo a opinião de alguns autores de que os cegos de nascença são capazes de apreender certas demonstrações matemáticas servindo-se de figuras gravadas ou em relevo, tal apreensão só é possível através do sentido do tacto. Depreende-se, pois, que Verney professa em relação à matemática um realismo ingénuo, considerando ser apenas real e válido o que é de natureza sensível, negando implicitamente a natureza ideal ou inteligível dessa disciplina.
O nosso pensador interroga-se ainda se outros tipos de proposições se encontram em idêntica condição. Ele examina em especial aquilo que denomina “axiomas metafísicos”, tais como: “dois e dois são quatro”, “o todo é maior que a parte”, “é impossível que uma coisa seja e não seja ao mesmo tempo”. Estão, portanto, incluídos os princípio lógicos. Sobre este assunto, Buffier tinha considerado que os referidos axiomas são apenas verdades internas ou associações de ideias, revelando, por isso, neste ponto um acordo com o racionalismo. Mas, opondo-se expressamente a esta doutrina, Verney, manifestando de novo uma atitude de empirismo radical, é de opinião que os mencionados axiomas estão em conformidade com objectos exteriores de modo análogo a todas as verdades externas. Com efeito, escreve ele textualmente: “Não possuímos a ideia do todo e da parte, de 'maior' e de 'menor', de 'dois' e de 'quatro' a não ser por meio dos sentidos”, pelo que a verdade de tais axiomas está nas mesmas condições que a verdade da proposição “existem outros homens além de mim”. Estamos, portanto, em ambos os casos perante verdades do senso comum.
Se as verdades do senso comum ou as verdades externas são as únicas que permitem afirmar a existência das coisas, isso significa que o sentido íntimo não proporciona um critério de verdade objectiva com a admissão de um mundo corpóreo independente do pensar. Compreende-se deste modo que o intento de Buffier e de Verney com a sua doutrina seja superar o solipsismo de certos autores da época para quem o que é testemunhado pela consciência é a única fonte de verdade e de certeza, não se justificando, por isso, admitir que existem objectos exteriores ao espírito.
Entre os defensores do solipsismo, Buffier refere “um filósofo inglês” (aparentemente Berkeley), enquanto Verney faz alusão a Malebranche, a Pierre Bayle e igualmente a Berkeley, considerando-os como pensadores que rejeitam a existência dos corpos.
Mas vou restringir-me a Verney e, antes de mais, a propósito da sua crítica de Malebranche. Há um passo na obra De la recherche de la vérité em que Malebranche põe a si próprio esta pergunta: se os sentidos nos induzem em erro sobre a existência real das qualidades secundárias (a cor, o sabor, etc.), porque não há-de suceder o mesmo acerca da existência das qualidades primárias (a grandeza, a figura, o movimento)? Este filósofo põe, portanto, em dúvida que, com base na especulação filosófica, possamos afirmar a existência dos corpos.
A conclusão lógica do passo de Malebranche é a reclusão num rigoroso fenomenismo subjectivo ou na afirmação de que, se há coisas em si, elas não podem conhecer-se. Não obstante, o autor francês liberta-se desse estado filosoficamente incómodo socorrendo-se da porta teológica, como era peculiar na época entre os cartesianos. Se afirmamos que existem os corpos exteriores, é porque Deus nos incute o sentimento dessa existência, e, sendo ele infinitamente perfeito, não pode enganar-nos.
O raciocínio do padre do Oratório é criticado por Verney invocando o pensamento de Locke: as qualidades secundárias dos corpos são apenas potências para suscitarem em nós várias sensações e as correspondentes ideias por meio das qualidades primárias. Diversamente, as qualidades primárias são inseparáveis dos corpos, sejam ou não percepcionadas pelos sentidos, motivo por que são objectivas, ou seja, dão-se a conhecer nos objectos da experiência.
Uma parte importante da crítica de Verney ao solipsismo ou à concepção céptica sobre a existência dos corpos tem na base um artigo do Dictionnaire historique et critique de Pierre Bayle. Bayle é um pensador que representa em França um elo essencial na cadeia de ligação entre o século XVII da revolução científica e o século XVIII iluminista do enciclopedismo. Mas, embora o filósofo francês combata na referida obra a intolerância e o obscurantismo, ele revela, por outro lado, um cepticismo pirrónico e uma rejeição do optimismo deísta. No mencionado artigo, Bayle proclama que os argumentos cépticos que levam os filósofos a recusar a realidade das qualidades secundárias são também conclusivos a respeito da rejeição da realidade das qualidades primárias, nomeadamente da extensão corpórea. Vejamos um pequeno passo desse artigo: “Há dois axiomas filosóficos que nos ensinam: um, que a natureza nada faz inutilmente; outro, que se faz inutilmente com o recurso a muitos meios o que pode fazer-se com a mesma comodidade através de poucos. Tendo em conta estes dois axiomas, os cartesianos (…) podem sustentar que não existem corpos, pois, quer eles existam ou não, Deus pode comunicar-nos igualmente todos os pensamentos que possuímos”. E, resumindo a restante parte do texto: afirmar que os sentidos nos certificam dessa existência não demonstra que os corpos existam, pois os sentidos induzem-nos em erro a respeito das qualidades secundárias, não havendo motivo para confiarmos neles relativamente à existência da extensão, da grandeza e do movimento, que podem, por isso, reduzir-se a simples aparências. Estes axiomas de Bayle apresentam, portanto, a base de um cepticismo que recusa não só a realidade das qualidades secundárias, mas também a realidade dos objectos enquanto dotados de qualidades primárias. Deste modo, todas as qualidades, primárias ou secundárias, são reduzidas a aparências ou a modificações do espírito, não havendo nenhuma evidência racional da existência de uma realidade independente do pensar.
Impugnando os dois axiomas referidos, Verney declara que o que é mais cómodo (a “via mais breve”) é aceitar ter Deus criado os nossos sentidos com tanta perfeição que eles visam necessariamente uma finalidade (pois Deus nada faz inutilmente), sendo essa finalidade, como a experiência comprova, adquirir as ideias possibilitadas pela percepção dos corpos exteriores. Ora, isto só pode suceder se os corpos existirem efectivamente.
Segundo a interpretação de Popkin, Bayle levou o cepticismo às suas últimas consequências. Não se trata, porém, do cepticismo elegante e aristocrático de Montaigne e de Charron, mas de um cepticismo radical de quem acredita não poder confiar-se não apenas nos sentidos, mas nem sequer na razão. Esta atitude céptica ou pirronismo extremo propunha-se abalar a confiança na razão para pôr em realce a verdade da fé cristã. Contrariamente, Verney assevera como sendo evidente a existência dos corpos: assim o confirmam os dados dos sentidos com a cooperação da “recta ratio”, possibilitando a todas as pessoas ajuizar com rectidão sobre essa existência.
Por último, tal como nos dois casos anteriores, também a incriminação da filosofia de Berkeley se fundamenta no facto de ela rejeitar a existência independente dos corpos contra o juízo do senso comum. Contudo, o parecer do nosso filósofo é fruto da incompreensão e da distorção no século XVIII do pensamento do autor irlandês, o que aliás não é de estranhar se pensarmos nas violentas e descontroladas reacções ocasionadas pelas teorias do bispo de Cloyne, as quais ainda se faziam sentir quando Verney escreveu. Aquela crítica é de início comedida, porque baseada em argumentos filosóficos, mas progressivamente e sobretudo na última parte torna-se contundente e sarcástica, tornando manifesta a obsessão do pensador português em identificar o imaterialismo berkleyano com o pirronismo mais ridículo. Vejamos um passo dessa crítica: “Expondo com sinceridade o meu pensamento, julgo só ser possível refutar Berkeley e outros disputadores do mesmo género torturando-os à fome e à sede durante três dias fechados num cubículo. Em tal situação, quando eles implorassem com persistência comida e água, seriam absurdas e insultuosas as suas súplicas se lhes mostrássemos as suas demonstrações. Na verdade, as suas mentes espirituais não se sustentam com comida nem com bebida, pois, se eles não têm um corpo, não necessitam de alimentos corpóreos. E, se eles objectassem que, se lhes déssemos de comer e de beber, isso suscitaria nos seus espíritos aquela sensação deliciosa de voluptuosidade que com veemência estavam desejando, poderíamos responder-lhes muito candidamente não existirem comida nem bebida nem nenhuma pessoa exterior às suas mentes que pudesse vir socorrê-los; e responder-lhes ainda ser-lhes suficiente a lembrança da comida e da bebida para incutir nos seus espíritos as ideias que lhes causam tanta satisfação. Assim ─ e disso tenho eu a certeza ─, pelo tormento físico refutá-los íamos com maior facilidade do que se recorrêssemos a muitos argumentos”.
Concluindo, o senso comum é uma disposição natural para ajuizar que certos princípios são verdades auto-evidentes. Estes princípios são primariamente relativos à existência de outros seres distintos de nós próprios, bem como à existência das suas propriedades mais importantes, cujo conhecimento é necessário para a condução da nossa vida animal, intelectual e moral. E eles têm uma função particularmente relevante nas doutrinas de Buffier e de Verney. No entanto, também o sentido íntimo é uma disposição natural e uma fonte genuína de verdade e de certeza, induzindo igualmente de um modo necessário a assentir, dada a superior clareza dos respectivos princípios, imunes a qualquer argumento adverso. E em ambos os casos existem verdades cujo conteúdo não pode ser deduzido de outras proposições.
Mas o sentido íntimo, tendo, embora, relações necessárias com o senso comum, pareceu a muitos poder garantir por si só os princípios do conhecimento evidente. Isso conduziu ao solipsismo, que é o resultado da redução ilegítima das verdades que o homem pode conhecer às verdades da consciência. Por esse motivo, aqueles dois pensadores reagiram contra o cepticismo que julgaram estar implícito na atitude solipsista, propondo o senso comum como o modelo em relação ao qual se podem evidenciar a insustentabilidade e o absurdo de certos sistemas filosóficos.
Considerando a estrutura geral dos seus argumentos, as doutrinas de Buffier e de Verney são basicamente idênticas quanto a soluções essenciais, ainda que difiram em certos aspectos particulares, nomeadamente porque o filósofo português manifesta uma postura de empirismo radical na concepção de que certas proposições da matemática e os princípios lógicos são verdades do senso comum, contrariamente ao que pensa Buffier.
Escreve Étienne Gilson que o senso comum é concebido pelos sequazes da respectiva filosofia (designadamente por Buffier e por Reid) como “uma espécie de sentido do verdadeiro, ao mesmo tempo infalível e injustificável”, e que esses sequazes pretenderam “fazer repousar todo o edifício do conhecimento verdadeiro sobre juízos instintivos e, portanto, irracionais”. Outros críticos da referida doutrina sustentam que ela não atende suficientemente ao fundamento objectivo dos princípios do senso comum, argumentando que se lhes dá assentimento em virtude da nossa constituição subjectiva; diversamente, para o aristotelismo escolástico esses princípios procedem do vínculo entre subjectividade e objectividade.

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Para terminar a exposição deste tema, vou fazer algumas considerações muito sucintas. Refiro primeiramente que Verney teve conhecimento de outros autores iluministas franceses de menor categoria, fazendo alusão às suas obras, tanto na Lógica como sobretudo na Metafísica. E não apenas de iluministas franceses, mas também ingleses, alemães, dos Países-Baixos e italianos. Ele conheceu essas obras ou por estarem redigidas em latim ou por estarem traduzidas. (Devo esclarecer que o nosso pensador desconhecia o inglês e o alemão).
Em segundo lugar, talvez viesse a propósito referir-me mais expressamente à influência de Locke sobre Verney, tanto mais que ele foi o seu principal mentor no campo da filosofia. Por outro lado, Locke teve enorme influência no Iluminismo francês, e terá sido provavelmente através da tradução francesa do Ensaio sobre o Entendimento Humano realizada por Coste que Verney tomou conhecimento da doutrina do filósofo inglês, ainda que isso pudesse também ter sucedido através da tradução latina de Burridge.
Em terceiro lugar, não seria totalmente descabida uma alusão ao modo como Verney reagiu perante o racionalismo cartesiano, até porque esta tendência foi um dos antecedentes mediatos do Iluminismo.
Contudo, referir-me a estes assuntos iria ampliar excessivamente a minha exposição. Poderá haver oportunidade para falar sobre eles na discussão que eventualmente se seguir.

As Idéias Liberais nas Primeiras Décadas do Século XIX

José Mauricio de Carvalho (UFSJ)

O liberalismo é uma expressão do iluminismo inglês. Para sua constituição contribuíram as teses sobre a propriedade e a tolerância de John Locke (1632-1704) que incorporadas ao Bill of Rights (1689), deram sustentação à prática parlamentar inglesa no período. Através do liberalismo se universalizaram movimentos e projetos modernos como a confiança na ciência e o desejo de progresso. Em nome dele foram questionados: a concepção absolutista do poder e a visão religiosa da Idade Média. Para a renovação da cristandade na Inglaterra contribuíra a religião protestante e um deísmo que na formulação de Herbert de Cherbury († 1648) formula uma visão de Deus compatível com a organização física do universo. O papel do protestantismo neste processo foi avaliado por Max Weber, como explicou recentemente Rubens Campante:
“O que o argumento weberiano tenta demonstrar, portanto, é simplesmente que, naquele contexto específico dos séculos XVI e XVII, a ética protestante veio a ser o elemento catalisador final de um longo processo de superação da civilização tradicional” (p. 6).
Ele tem razão. A adesão ao protestantismo renovou a moral medieval e auxiliou na defesa da liberdade do indivíduo frente ao Estado. A abertura à riqueza proposta pelos protestantes ajudou na incorporação da idéia de progresso material da sociedade.
Na formulação original do liberalismo a classe proprietária dos bens é que se fazia representar no Poder Legislativo. A esta prática política somam-se as teses sobre a liberdade econômica e a riqueza das nações elaborada no século XVIII por Adam Smith (1723-1790). As idéias de Smith se ajustaram bem no ambiente britânico porque Locke já indicara, tendo por pano de fundo a ética protestante, os motivos pelos quais propriedade e riqueza eram dignificantes da condição humana. Ao longo do século XIX o debate envolvendo o aperfeiçoamento da representação acabou aproximando as idéias liberais da prática democrática. Numa perspectiva política o liberalismo de Locke criou os instrumentos para a defesa dos direitos individuais, a divisão do poder político e as idéias pedagógicas do livre desenvolvimento do indivíduo.
A compreensão adequada do pensamento liberal é uma exigência atual, especialmente depois do fracasso histórico do marxismo. Apesar do insucesso do marxismo lembra Paim (2007): “alguns contextos culturais revelaram-se extremamente receptivos à promessa irresponsável (de que o fim do capitalismo traria prosperidade geral)” (p. 29). O estudo da formulação inicial do liberalismo também é importante porque esteve na base da constituição do Estado Brasileiro. O liberalismo esteve na base da organização política, social e econômica do Brasil que recebeu D. João VI em 1808 e permaneceu em alta nas décadas seguintes quando foi construído o alicerce do país independente. O pensamento liberal brasileiro originário reproduziu dificuldades herdadas do iluminismo português, fato que afetou seu desenvolvimento posterior. Sua adequada compreensão envolve componentes que procuro clarear nesta comunicação.
Partimos de uma caracterização do debate moral realizado durante o período colonial e analisamos, em seguida, as teses políticas de Hipólito da Costa, o liberalismo ético normativo do Visconde de Cairu, o filosófico-político de Silvestre Pinheiro Ferreira e o católico de Diogo Feijó tomando-os como expressões representativas do liberalismo brasileiro nas primeiras décadas do século XIX.

A moralidade contra-reformista em Portugal
No livro Caminhos da moral moderna, a experiência luso brasileira (1995) dividimos em três períodos o tempo histórico que Joaquim de Carvalho denomina Segunda Escolástica. Ele reconheceu apenas a existência de um período barroco e outro escolástico. Dividir a Segunda Escolástica em três períodos esclarece melhor as variações do modelo ético ali encontrado. O primeiro momento, identificado com o século XVI, aproximou o debate moral da preocupação renascentista, atribuindo-lhe um sentido humanista que abrandou o rigor das máximas medievais. São representantes mais notáveis deste período Frei Heitor Pinto (1528-1584) cuja obra marcante é Imagem da vida cristã, Frei Amador Arrais (1530-1600) e Pe. Manoel de Góis (1524-1597), autor das famosas Disputas do Curso Conimbricense sobre os livros de moral a Nicômaco. “Crescendo nele os ideais humanistas e a atividade comercial era inevitável que se interrogasse se estaria nisso a trilha da felicidade” (Carvalho, 1995, p. 55). Os moralistas mencionados entendem que a felicidade desejada por todos vem da aproximação com Deus. Acrescentam, no entanto, que a construção de um Estado atuante anteciparia a formação de uma sociedade justa e feliz cuja concretização definitiva seria o céu. Os moralistas aceitam, pois, o progresso geral do Estado.
Na medida em que o racionalismo cartesiano se sobrepôs ao jus naturalismo tomista, como dissemos em Meditação sobre os caminhos da moral na gênese do tradicionalismo luso brasileiro (1995): “a discussão moral voltou-se quase exclusivamente para o projeto restrito da felicidade pessoal, o controle de qualquer efeito não intencional da conduta, ou melhor, a se concentrar na conquista das virtudes que levariam à paz interior após a morte” (p. 83). É isto o que caracteriza o segundo período do qual são representantes mais notáveis: Frei Antônio das Chagas (1631-1682), autor de Cartas espirituais e Pe Manoel Bernardes (1644-1710), que escreveu Estímulo prático para seguir o bem e fugir do mal; Pe. Manoel Fernandes, autor de Alma instruída na doutrina cristã, Pe. Antônio Vieira, notável escritor dos Sermões e Frei Sabino Bononiense, que escreveu Luz moral. Os discursos morais desse período restringem felicidade à salvação eterna. O projeto moral perdeu amplitude de horizontes, porque a conduta fica reduzida a princípios rigorosamente ditados pela razão para a conquista da salvação da alma. Esta distinção é imprescindível, os moralistas do segundo período abafaram a idéia da riqueza do Estado em nome da pureza interior.
O terceiro período, que não aparece nas referências de Joaquim de Carvalho, é marcado pelo esforço para demonstrar que a existência humana tinha um sentido mais amplo do que a salvação, embora suas conclusões estivessem longe dos ideais modernos. Este terceiro momento coincide com a geração pombalina. Se a vida humana individual continuava sem uma razão maior do que a salvação, a ela se adicionava uma finalidade terrena: o gerenciamento de bens com vistas ao desenvolvimento do Estado, ao qual se submetia à prática da ciência. É esse o ideal pombalino que resume o iluminismo português, a incorporação do progresso do Estado. Os autores mais representativos desse período são: Teodoro de Almeida (1722-1804), Antônio Soares Barbosa (1724-1801) e Bento José de Souza Farinha (1740-1820). O primeiro adota um ecletismo filosófico, rompendo com os moralistas do ciclo anterior. Soares Barbosa, autor de Discurso sobre o bom e verdadeiro gosto da Filosofia (1776), elabora importante investigação moral no livro Tratado elementar de Filosofia Moral (1792). Nesse livro, conclui que a moral está ligada estreitamente a Deus e depende da religião. Considera a virtude fonte da felicidade e afirma que ela decorre do cumprimento das leis que Deus deu aos homens. Os dois filósofos dialogam com autores modernos, mas recusam a fundamentação racional da ética. O primeiro preserva a dependência da moral à religião e o monopólio da Igreja Católica no estabelecimento da moral social, o segundo submete o fundamento da moral ao Estado. Souza Farinha, por sua vez, propõe uma fundamentação divina ao direito natural. Ele justifica o ideal moral tradicional, tanto o seu caráter eudemonista, como a condenação da ambição, avareza e deleite, isto é, riqueza e sexo. Como indica Paim no item III do primeiro capítulo da História das idéias filosóficas no Brasil (1997), esta mentalidade foi compartilhada no Brasil.

O liberalismo político de Hipólito José da Costa Pereira Furtado Mendonça
Hipólito da Costa nasceu na Colônia do Sacramento em 1774 e morreu em Londres no ano de 1823. Depois que a Colônia foi devolvida à coroa espanhola sua família mudou-se para Pelotas, RS, cidade onde ele passou sua adolescência. Iniciou seus estudos em Porto Alegre e, mais tarde, cursou Leis, Filosofia e Matemática (1789) na Universidade de Coimbra, em Portugal. Concluído o curso viajou para os Estados Unidos a serviço da Coroa Portuguesa para estudar as técnicas industriais daquele país. Ali residiu por dois anos e tomou contato com o pensamento liberal. No seu retorno a Portugal foi preso (1802) e acusado de participar da maçonaria. Conseguiu fugir da prisão (1805) e depois de passar pela Espanha se estabeleceu em Londres. Obteve a cidadania inglesa comprando ações do Banco da Escócia. Mais tarde casou-se Mary Ann Sheley (1817) com quem teve três filhos. Na capital britânica fundou o jornal Correio Brasiliense (1808), que se tornou um dos mais importantes periódicos do Império Português no período. O jornal foi proibido de circular por D. João VI, mas o prestígio de Hipólito da Costa manteve-se alto e o periódico continuou a ser distribuído até sua morte. Pelo prestígio que alcançou foi convidado para ser Ministro na Confederação do Equador (1817), mas recusou o convite. Morreu na capital britânica sem saber que o Imperador Pedro I o nomeara cônsul brasileiro em Londres.
Depois de preso pela Inquisição sob a acusação de divulgar idéias maçons (1802 - 1805), Hipólito da Costa concentrou-se na veiculação do liberalismo. Ele entendia que, ao ter sido ratificado por Cortes a autonomia do Condado Portucalense, que marca a fundação de Portugal, a audiência aos súditos precedera a experiência inglesa de respeito ao cidadão. Para ele esta tradição presente no liberalismo político era suficiente para proteger os cidadãos das arbitrariedades do Estado e assegurava a abertura da mentalidade nacional ao pensamento moderno. Não lhe pareceu necessário enfrentar diretamente as teses contra-reformistas presentes na tradição portuguesa. Contesta o democratismo francês, movimento adversário da monarquia liberal. Conforme lembra Paim (1997): “Para o redator do Correio Brasiliense, o partido francês, em Portugal, representava o principal obstáculo ao aperfeiçoamento da monarquia” (p. 135). Pela tendência de confronto com o liberalismo mais radical a meditação de Hipólito da Costa não evoluiu para teses construtivas do liberalismo, ficando este trabalho para a geração seguinte. Afirma Paim (1968): “a incorporação do liberalismo seria sucessivamente postergada para, afinal, só se explicitar plenamente no período posterior à independência” (p. 55). A posição adotada por Hipólito da Costa mostra o quão importante para o desenvolvimento das idéias liberais foi o papel da geração que se seguiu.

O liberalismo ético normativo de Cairu
José da Silva Lisboa, Visconde de Cairu, era baiano e viveu de 1756 a 1835. Herdeiro intelectual de Adam Smith, Cairu avaliou de forma singular o projeto ético- normativo, econômico e social contido em A Riqueza das Nações. O livro clássico de Smith concebido como trabalho moral foi importante na formação da economia como ciência. A obra permitiu entender as relações humanas baseadas num ideário normativo que conjuga os interesses individuais com a construção de benefícios sociais. Assim foi porque além dos temas operativos que alimentam a economia como ciência, capital final e circulante, teoria dos juros, volume da população, etc, Smith abordou objetivos e fins da existência humana, assuntos que envolvem a responsabilidade e a liberdade. Ele nos apresenta o ideal de uma vida singular a ser construída no esforço diuturno para atender nossas necessidades.
Há um aspecto básico no liberalismo: trata-se de uma teoria da vida pensada como liberdade e entendida como realização subjetiva. A existência singular merece ser protegida da arbitrariedade estatal porque associa a liberdade pessoal à responsabilidade. Assim, o liberalismo resguarda o funcionamento da vida social pelo cumprimento de leis escritas e pela tolerância, como propôs John Locke, mas especialmente assegura a sobrevivência coletiva do grupo porque apresenta o trabalho como fonte de valores. Conforme o propósito de Smith, o trabalho livre e responsável assegura a vida coletiva e enriquece os Estados, resguardando o ideal de homem como subjetividade livre. Para a realização destes ideais é que estrutura a doutrina econômica que se torna uma teoria sólida, com temas específicos.
O Visconde de Cairu leu A Riqueza das Nações, concluindo que a adoção das teses econômicas do liberalismo eram adequadas ao Brasil, que recebia um Rei determinado a superar o atraso econômico e social de sua colônia. A adoção das práticas liberais, ele acredita, propiciaria o aperfeiçoamento moral dos cidadãos, lançando o país numa era de progresso e desenvolvimento.
Assumindo o liberalismo como ideal de vida, Cairu aponta uma rota para a intelectualidade brasileira incorporar o pensamento moderno e estar à altura de seu tempo. Como já dissemos (1995) o “liberalismo ético normativo de Cairu integra o conceito iluminista de valorização do homem que supera o teocentrismo medievo, a outro conceito iluminista, a saber, o de progresso permanente” (p. 124). Portanto, o Visconde via na obra de Smith uma forma de preparar o país para superar problemas históricos e adotar um pensamento moderno. Ele demonstra confiança na economia política para viabilizar a vida pessoal, funcionar como elemento de coesão das ciências, assegurar a vida coletiva e servir de guia para a própria existência. Cairu reconhece que esta forma de entender o liberalismo era própria dos intérpretes ingleses de Smith daquele momento.
Cairu afirma em ensaio publicado após sua morte (1851) que a aplicação dos princípios liberais não afetava os destinos da monarquia portuguesa, antes o contrário se daria, o desenvolvimento do Brasil conferia ao rei português “uma glória que nenhum grande soberano ou Estado jamais teve” (p. 26). Os acontecimentos históricos que se seguiram à independência o levaram a abandonar este entendimento. Os movimentos rebeldes nas províncias que contestavam a autoridade monárquica ou a incapacidade do regime de oferecer maior igualdade entre os homens permitiram-lhe desconfiar do liberalismo como projeto ético normativo e a procurar fundamentos mais estáveis para a moral. Ele foi buscar este princípio na moral católica, acompanhando os intelectuais portugueses como Pascoal José de Melo Freire que conclui que a modernização dos costumes e das leis não podia prescindir da moral católica.
Nos últimos anos de vida concluiu que a universalidade da ética não pode depender da força de simpatia ou da utilidade como quiseram David Hume e Adam Smith. Também concluiu que o desenvolvimento material pura e simplesmente não assegurava a paz, a prosperidade e a estabilidade política. Na obra Constituição Moral e Deveres do Cidadão (1824), Cairu considera a incapacidade da razão e dos sentimentos estabelecerem sozinhos os rumos que garantissem o aprimoramento pessoal e o desenvolvimento automático das nações. As virtudes naturais não eram fruto das alterações da moral católica e não podiam prescindir dela. Por outro lado, não se podia também assumir uma moral cristã amplamente negativa da condição humana como o fora a tematização contra-reformista, cujos ciclos tivemos resumir no item anterior. Assim ele se insere no espírito da geração pombalina ao propor uma forma de desenvolvimento humano e material associado aos valores e virtudes cristãos. Na ocasião, ao lado das críticas ao ateísmo, também combate os excessos do utilitarismo com base no catolicismo.
O resultado deste esforço foi importante para colocar o país no espírito dos novos tempos, mas o resultado deixou-nos dificuldades ainda hoje não completamente superadas.
Na proporção em que avança em sua reflexão, Cairu desconsiderou a harmonia de interesses que se operava na vida social, independente das instituições ou tradições. Tendeu a tratar o problema como uma dicotomia que oscilava entre a paixão e a razão perdendo de vista a ordem cultural, aquela que Adam Smith havia denominado de mão invisível. O resultado foi uma síntese ampla onde se traçou o perfil de uma existência virtuosa (vícios, virtudes e deveres) inserida na conduta humana em geral (consciência moral, sentido da felicidade, fontes, leis e deveres morais). Ele também tratou do papel da liberdade e da vontade. Todo esse esforço especulativo revelou, contudo, uma inconsistência insuperável, a redução da doutrina dos valores a um ideal distante, traçado de antemão e voltado para obter a felicidade noutro mundo pela prática de virtudes que significavam a negação de uma existência humana. Silva Lisboa entendeu que pelo controle moral da economia o homem podia cumprir os desígnios de Deus, ocasião em que se revelam os pontos obscuros do projeto, herdeiro da insuficiência moral do pombalismo. Insuficiência que aparece em três níveis: primeiro na conciliação do propósito ético-religioso do liberalismo de Locke e Smith que aproxima a ação humana da vontade de Deus de modo irreconciliável com o ideal de salvação da Contra-reforma, segundo na fundamentação religiosa da ética na contramão da meditação moderna e terceiro na inadequada abordagem da ordem cultural que não se reduz aos instintos e nem é resultado de deliberação racional.

O liberalismo filosófico-político de Silvestre Pinheiro Ferreira
O filósofo, filho de fabricantes de seda, nasceu em Lisboa a 31 de dezembro de 1769 e morreu em 1 de julho de 1846, sendo sepultado no Cemitério dos Prazeres.
“A parcela do pensamento de Pinheiro Ferreira que merece maior destaque, pela influência que deixou no pensamento brasileiro é o exame do empirismo e a meditação sobre temas políticos. Suas idéias foram sistematicamente estudadas e suas principais obras reeditadas recentemente: Preleções filosóficas sobre a teórica do discurso e da linguagem, a Estética, a Dioceósina e a Cosmologia, publicadas em fascículos a partir de 1813, Categorias de Aristóteles (1814), Ensaios de Psicologia (1826), Constituição política do Império do Brasil e Carta Constitucional do Reino de Portugal (1830), Projetos de ordenações para Portugal (1831 / 1832), Manual do cidadão em um governo representativo (1834), Noções elementares de ontologia (1836), Noções elementares de filosofia geral e aplicada às ciências morais e políticas (1839), Teodicéia ou tratado elementar sobre a religião natural e a religião revelada (1845)”. (Carvalho, 2001. p. 51).
Silvestre Pinheiro Ferreira dedicou-se a muitas questões na fase em que se transferiu para o Brasil acompanhando Dom João VI. Ele preocupava-se em fundamentar o empirismo e estabelecer as bases do liberalismo político ou direito constitucional. A sua meditação sobre política é aqui o objeto principal de nossa atenção. Pinheiro Ferreira julgou necessário fundamentar a liberdade política, pois vivia num ambiente cultural onde o tema não era privilegiado. Os motivos eram a tradição absolutista da Coroa portuguesa e a tradição contra-reformista que preserva valores da cristandade medieva.
Para superar as dificuldades morais de nossa cultura, o filósofo decide estudar a relação entre a consciência e o corpo para justificar a ação livre. Ele reconhece que havia uma união entre o corpo e a alma, mas a última guardava autonomia. Tal autonomia parece-lhe um pressuposto para a liberdade. Ele a reconhece com base nas vivências interiores que coloca ao lado das sensações externas. Nas primeiras sustenta as ações voluntárias que caracterizam o agir humano e nas outras o instinto como ocorre nos animais.
A justificativa da liberdade para a ação era necessária para fundamentar a liberalização das instituições políticas. Este era o objetivo de parte da elite formada no espírito pombalino. O que o distingue dos demais integrantes daquela elite é pensar o liberalismo político inserido num sistema filosófico que estivesse em harmonia com a tradição portuguesa. É daí que vem o seu projeto de aproximar as idéias de Aristóteles daquelas presentes no empirismo. Ao fazê-lo encontra os meios de responder às objeções do iluminismo alemão que desenvolveu forte oposição a Aristóteles, bastando considerar a meditação de Kant. Os alemães combatiam também a dogmática católica, sustentada no aristotelismo e na escolástica.
A adoção da organicidade entre os poderes e a preocupação com a representação dos interesses fora tema do liberalismo político inglês. Pinheiro Ferreira, como Locke, sugere a monarquia constitucional como o sistema a ser implantado. Não havendo no Império Português experiência no assunto afirma que o fundamental para implantação deste sistema político era organizar a representação da sociedade, acompanhando Locke que, como lembra Paim (1987) “formulou a doutrina da representação como sendo de interesses” (p. 21).
A meditação política de Silvestre prolonga-se além da década de vinte estendendo-se pelos anos trinta, período em que vive refugiado em Paris. Ao exílio se obrigou porque as idéias liberais entram em descrédito depois do retorno da Corte a Portugal. Mesmo antes do retorno a Portugal, o rei e seus colaboradores próximos consideravam que os movimentos denominados liberais tinham pouca consistência teórica e prática, como era o caso da Revolução Pernambucana de 1817. Mesmo a revolução de 20 em Portugal revelava a inconsistência de intelectuais e políticos pouco conhecedores ou experimentados nas idéias liberais. Apesar da aliança com a Inglaterra, os portugueses não acompanhavam a evolução das idéias liberais no país aliado.
Pinheiro Ferreira convencera-se que não era possível virar as costas para os ideais modernos e esperava reformar as instituições, evitando o caminho das revoluções ou dos rompimentos bruscos com a tradição. Seu propósito era evitar as formas radicais assumidas pelo iluminismo francês que operou uma crítica radical ao cristianismo medieval optando por eliminá-lo ao invés de renová-lo e que em matéria de renovação política defendia a revolução. Pinheiro Ferreira deixou lições de aperfeiçoamento humano e social que constituem o ponto de partida da filosofia brasileira. O bem coletivo ou social foi pensado com base no utilitarismo de Bentham, mas a tese de Bentham, como a de Locke, mereceu adaptação. Não seria legítimo, explicou, em nome do bem do maior número, sacrificar os interesses de uma expressiva minoria. A questão dos interesses pede contínua negociação para não sacrificar a minoria, observa Esteves Pereira (1996):
“Os interesses deviam considerar o fato de que o maior bem do maior número (sem uma ponderação crítica) é um erro de transcendência (...), pois basta refletir que por esta definição, numa sociedade composta de duzentos sócios, noventa e nove serão sacrificados a cento e um” (p. 16).
O seu espírito conciliador e moderado se observa no documento que apresentou às Cortes em 4 de julho de 1821. Nele defende a soberania das Cortes, mas também a harmonia necessária entre elas e o rei. As leis votadas no parlamento precisavam do consentimento do monarca para entrar em vigor.
O aprofundamento destas idéias é tema do Manual do cidadão em um governo representativo, onde ele esclarece seu propósito de promover a transição de um governo historicamente absolutista para um sistema representativo. Acompanhando o liberalismo de então estabelece níveis de rendimentos econômicos para integrar o colégio eleitoral. Distingue os direitos do cidadão que nascem da lei, dos chamados direitos naturais, inerentes à sua condição humana.
A consciência dos problemas decorrentes da instabilidade política que vem da disputa pelo poder, mostra os motivos que o levaram a propor o Poder Moderador para assegurar o equilíbrio entre os poderes. Esse instituto seria capaz de mediar os elementos em conflito e harmonizar os poderes do Estado. A organização política que se desenvolve no segundo reinado tem um caráter próprio. Seus articuladores se afastam de algumas teses de Pinheiro Ferreira, mas elas foram referência para os liberais brasileiros que pensaram o Brasil independente.

O liberalismo católico de Diogo Antônio Feijó
Diogo Antônio Feijó nasceu na cidade de São Paulo em 3 de agosto de 1784 e ali morreu em 10 de novembro de 1843. Seguiu carreira eclesiástica e se ordenou em 25 de fevereiro de 1809. Sua obra fundamental foi publicada com o título de Cadernos de Filosofia e foi escrito entre 1818 e 1821.
O livro foi elaborado para servir de texto no curso que Feijó ministrou durante parte da vida que viveu em Itu. No livro Feijó iniciou suas reflexões repetindo as três perguntas consagradas por Kant: “que posso saber? (Crítica da Razão Pura), que devo fazer? (Crítica da Razão Prática) e que me é dado esperar? (Crítica do Juízo), o que revela conhecimento do kantismo” (Carvalho, 2000. p. 91). É também importante lembrar que Feijó se referia ao objeto da Metafísica como o fizera o filósofo alemão e não como propusera Antônio Genovesi (1713-1769). Para Feijó, Metafísica era a ciência de questões ligadas ao conhecimento humano (conteúdo, objeto e origem) e não uma teoria do ser.
Feijó desenvolve o seu conceito de filosofia como investigação sobre o entendimento humano, acompanhando Kant, mas não o segue quando estuda os problemas morais. A concepção de moral elaborada por Feijó revela que ele se aproximou do eudemonismo aristotélico-tomista e das teses de Genovesi, mantendo-se, no assunto, preso à influência do iluminismo lusitano. Como Kant entende a questão? Ele não queria uma vontade dirigida para fins outros que não a execução dos atos morais. Agir moralmente era, para ele, agir pelo dever. Quando uma ação não é comandada pela vontade de obedecer a lei, não é autônoma, logo não é moral. Quando se orienta para o cumprimento da lei a ação é moral e foi denominada de boa vontade. Portanto, moral é aquela escolha que orienta para o cumprimento da lei que comanda a ação.
Para Feijó, ao contrário do que pensou Kant, a filosofia moral é a ciência que trata dos deveres e meios de o homem alcançar a felicidade. Por natureza, o homem dispõe de um conjunto de forças que o levam à ação. Feijó distingue duas em constante disputa, o desejo de felicidade e amor, que orienta para os próprios interesses, e o dever, que obriga a agir nobremente. Em resumo, assim é a natureza moral do homem: desejo da felicidade, fundado no egoísmo e amor da justiça, sentimento nobre e desinteressado, sustentado na estima de si; tudo iluminado por uma razão que descobre os fins dessas propensões e pela capacidade de agir livremente. É devido à liberdade que o homem abraça ou rejeita os objetos indicados pelas propensões ou oferecidos por sua razão.
As nossas ações, explica o pensador, são guiadas por uma lei superior que resulta das relações que têm os entes entre si. Essa lei é que nos leva a reconhecer Deus como Criador e a nele confiar. Descobrimos, olhando a natureza, que tudo tem uma razão, uma finalidade. Os corpos funcionam com vistas à manutenção da vida e às faculdades humanas para promoverem a perfeição moral. Depois de tratar o comportamento moral de modo cuidadoso, Feijó elaborou uma espécie de guia moral.
Esta investigação, tema do 3° Caderno, aparece resumidamente em O retrato do homem de honra e verdadeiro sábio. Nesse texto, Feijó explicou que a verdadeira sabedoria e felicidade consistem em temer a Deus e obter a salvação.
Foram muitas as suas indicações para uma vida moral. Desde o comer e beber com moderação, fugir dos jogos de azar, trabalhar com parcimônia, descansar o tempo necessário para recobrar as forças e voltar ao trabalho, respeitar a natureza do corpo e do espírito e até evitar discussões inúteis e caprichosas. O sacerdote se empenhou em mostrar que o trabalho é importante, que as riquezas materiais não são detestáveis se são usadas com fins nobres, que a moderação nos usos e costumes é o que melhor convém ao homem, que todos devem ser previdentes e buscar bens que garantam uma velhice tranqüila. Esse guia, se seguido, é o retrato do sábio, segui-lo “é receita de felicidade” (idem, p. 172).
A fragilidade do guia moral consiste em sugerir que a valorização da existência humana e dos bens deste mundo podiam ser feitos sem contraditar os valores veiculados na moral católica de índole contra-reformista, voltados exclusiva e unilateralmente para a religiosidade do homem e pela profunda desconfiança do mundo. Estas idéias resumem o programa de vida sugerido pelo liberalismo católico de Feijó, completado pela prática política que desenvolveu como político que chegou a regente do Império.

Considerações finais
A compreensão da liberdade como algo fundamental ao homem está base do pensamento liberal defendido no Segundo Reinado. Eduardo Ferreira França entende que a liberdade individual devia ser defendida frente aos órgãos do Estado, pois este não o reconhece naturalmente. Para melhor resguardar a liberdade mostra que a Constituição liberal evita que todo o poder fique concentrado num único poder, acompanhando Pinheiro Ferreira para quem o legislativo e o Rei deviam agir de modo harmonioso. A discussão moral anteriormente mencionada e a sua vida política permitiram o médico Ferreira França rever suas posições naturalistas. Com a afirmação da liberdade pessoal, a aceitação de um programa moral capaz de justificar a vida terrena e o entendimento de que o Estado a devia respeitar os indivíduos, completa-se, em meados do século, a superação do entendimento que o homem é criatura desprezível, vil bicho da terra veiculada pela cristandade medieval. Ainda assim resquícios da mentalidade contra-reformista permaneceram e reapareceram em diferentes momentos da história do Brasil. O aprimoramento da representação é outro tema de Pinheiro Ferreira que se tornará uma preocupação dos políticos do Segundo Reinado.

Bibliografia
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