terça-feira, 30 de setembro de 2008

A Idéia de Modernização no Brasil sob o Influxo da Filosofia Política de Rousseau

Luiz Alberto Cerqueira (UFRJ)

Notas ao fim do texto

Queremos mostrar que foi Domingos José Gonçalves de Magalhães (1811-1882) quem tomou a si, pela primeira vez, a tarefa de pensar a modernização no Brasil como um problema filosófico. Outrossim, que foi no contexto do Iluminismo francês, particularmente sob a influência da filosofia política de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), que ele procurou ressaltar o caráter ativo do espírito patriota como superação do espírito indiferente e contemplativo que predominou na educação brasileira durante o período colonial.

A liberdade como indiferença: Antonio Vieira
Inteiramente formado nas instituições de ensino do Brasil colonial, o jesuíta Antonio Vieira (1608-1697) é o único autor desse período cujo pensamento tem um caráter doutrinário. Pondo-se de acordo com a teologia tomista, ele concebe a vida civilizada como o resultado de uma relação de amizade entre o Criador e a criatura racional: o homem deve obedecer à lei de Deus pelo bem que dela recebe. Ora, tal reciprocidade supõe a razão e a vontade. Aquela, para que o homem possa captar a visão do que é bom como finalidade da vida; esta, para que ele possa querer o que captou pela razão[1]: “Almas, almas, vivei como almas”, diz Vieira, “se conheceis que a alma é racional, governe a razão, e não o apetite” (As cinco pedras da funda de Davi). Neste sentido, a virtude, o mérito, isto é, o governo da razão nas próprias ações implica uma espécie de saber como fundamento da existência moral. Trata-se do conhecimento de si:
"Neste mundo racional do homem, o primeiro móbil de todas as nossas ações é o conhecimento de nós mesmos [...] Todos comumente cuidam, que as obras são filhas do pensamento ou idéias, com que se concebem e conhecem as mesmas obras: eu digo que são filhas do pensamento e da idéia, com que cada um se concebe, e conhece a si mesmo." (As cinco pedras da funda de Davi)
O que aqui ponderamos é que, mesmo levando-se em conta as prerrogativas da teologia sobre a filosofia no Brasil colonial[2], o conhecimento de si em Vieira envolve a mesma consideração da alma separada do corpo desde o “conhece-te a ti mesmo” socrático; mais ainda, que esta separação em Vieira tem o mesmo sentido filosófico de libertação da alma, que se verifica desde os gregos, na medida em que torna o homem verdadeiramente senhor de si em face das limitações em que se encontra em sua existência natural:
"ainda que o homem verdadeiramente é composto de corpo e alma, quem se conhece pela parte do corpo ignora-se, e só quem se conhece pela parte da alma se conhece [...] tratava São Paulo o seu corpo, como se não fora parte sua, senão um escravo rebelde, e como tal o castigava, e domava a açoites [...] estimava o seu corpo, não como parte sua, senão como um cárcere penoso, escuro, e hediondo, mais terrível que a mesma morte, e como tal suspirava por se desapegar, e livrar-se dele [...] separemos [...] ao senhor do escravo [...] vivamos como almas separadas. As nossas almas todos sabem que têm dois estados, um nesta vida de alma unida ao corpo, outro depois da morte, que é e se chama de alma separada. Este segundo estado é muito mais perfeito; porque, livre a alma dos embaraços e dependências do corpo, obra com outras espécies, com outra luz, com outra liberdade [...] se a morte há de fazer por força esta separação, por que a não faremos nós por vontade?" (Idem; grifos acrescentados)
É nesta perspectiva de entendimento que o pensamento de Vieira se põe em sintonia com os principais teólogos e filósofos da Companhia de Jesus, como Luis de Molina (1535-1600), Pedro da Fonseca (1528-1599) e Francisco Suárez (1548-1617), para os quais o grande desafio do século XVI era conciliar a presciência e a predestinação divinas com o livre arbítrio da vontade. Eis como se apresenta o problema: se tudo que acontece é do conhecimento prévio do Criador, segundo seu plano (presciência) e, sobretudo, por sua vontade (predestinação)[3]; e se o homem foi criado com liberdade para querer e, contrariamente, não querer; como é possível que possa tudo estar previsto, e acontecendo necessariamente segundo a vontade do Criador, sem que deixem os homens de ser livres? A resposta ao problema, endossada por Vieira, baseia-se numa compreensão da contingência dos contrários.
Segundo a definição assumida pelos teóricos jesuítas, “livre é aquele agente que, postos todos os requisitos para agir, pode agir e não agir, ou agir de maneira que possa agir também ao contrário”[4]. Observe-se que o sentido da contingência de poder “agir e não agir, ou agir de maneira que possa agir também ao contrário” não exprime apenas o sentido lógico-formal de possibilidades opostas, assim como é possível a um homem agir como casado ou solteiro, mas de tal maneira que ele não pode ser casado e solteiro ao mesmo tempo, e pode não ser casado nem solteiro. De um ponto de vista diferente, trata-se aqui de possibilidades opostas como expressão da luta pela existência natural, a qual faz do homem o lobo do homem. A luta pela existência social contra essa mesma luta pela existência natural revela a coexistência de homens politicamente desiguais: aquele que aprendeu a limitar e regular seu apetite sob princípios e regras racionais, encontra-se em condições de governar e comandar (o senhor ou chefe); contrariamente, em seu estado natural de ilimitação e irregularidade do apetite o homem só tem condições de obedecer (o escravo ou súdito). Daí o caráter ontológico da desigualdade em Vieira: “Bom era que nos igualáramos todos: mas como se podem igualar extremos que têm a essência na mesma desigualdade?” (Sermão de Santo Antonio, de 1642)[5]. Portanto, o caráter contingente da liberdade de arbítrio, de poder “agir e não agir, ou agir de maneira que possa agir também ao contrário” exprime não só o sentido de um jogo de possibilidades que permite ao homem usar da razão para fazer tudo o que quer, mas também o fato de que pelo corpo ele padece o que não quer[6].Supondo o homem capaz de adquirir uma disposição para a forma da vida mais perfeita, Vieira entende que pelo conhecimento de si ele poderia tornar-se indiferente à luta pela existência natural. Assim, pela indiferença ele não só poderia libertar-se de seu modo cego de obedecer, como também poderia tornar-se-lhe evidente que aquilo que é bom para si reveste-se de um caráter mais belo e divino quando beneficia a sociedade como um todo[7]. É neste sentido que Vieira interpela seus ouvintes: “Basta que havemos de trazer as palavras de Deus a que digam o que nós queremos, e não havemos de querer o que elas dizem?” (Sermão da sexagésima).
Para completarmos a primeira parte deste trabalho, cumpre ressaltar o caráter contemplativo da liberdade como indiferença. No Sermão XIV, da série Maria Rosa Mística, em 1633, Vieira adverte que, embora escravizado e vivendo em promiscuidade uma vida “que é uma semelhança de inferno”, o negro africano poderia ver sentido e dignidade em sua existência se ele se convertesse. “Que coisa é a conversão de uma alma”, definirá Vieira, posteriormente, “senão entrar um homem dentro em si, e ver-se a si mesmo?” (Sermão da sexagésima, 1655). Interiorizado pela oração, o escravo se despegaria do corpo agrilhoado e aviltado, tornando-se, assim, indiferente ao mecanismo de sua sujeição: “Que tem que ver a liberdade de uma ave com penas e asas para voar”, questiona Vieira, “com a prisão do que se não pode bulir dali por meses e anos, e talvez por toda a vida?” (Sermão XIV, da série Maria Rosa Mística). Convertendo-se, e comparando a própria dor à de Cristo no calvário, o escravo tornar-se-ia capaz de ver a utilização de sua força física no engenho de açúcar converter-se em trabalho; a sua prisão em liberdade; o “inferno” em “paraíso”.

A liberdade como superação da indiferença: Gonçalves de Magalhães
A tarefa filosófica de Gonçalves de Magalhães foi proclamar o absurdo de uma liberdade indiferente e contemplativa ante a necessidade de modernização do Brasil pós-1808. Referimo-nos ao processo histórico de transformação das instituições de cultura sob o influxo da filosofia moderna. Com a emancipação política do país (1822), tornou-se urgente apresentar e discutir o problema: “Custa-nos muito no meio, ou no fim da vida, renovar as nossas idéias, como o mudar de linguagem, e reformar os nossos costumes [...] não podendo conciliar fatos que nos parecem contrários ao que sabemos, negamos hoje o que afirmamos ontem, damos agora como causa o que antes reconhecemos ser efeito” (Gonçalves de Magalhães, Fatos do espírito humano, XV). Ora, até então, aprendêramos com Vieira que o conhecimento de si não era mais que o efeito da conversão, exatamente porque, segundo sua explicação, “assim como Deus nesta vida se conhece por fé, assim se conhece por fé também a alma” (As cinco pedras da funda de Davi). Entretanto, após o cogito cartesiano, e considerando-se a trajetória da intelectualidade brasileira das primeiras décadas do século XIX no contexto do Iluminismo[8], não havia por que subordinar o conhecimento de si ao conhecimento de Deus, submetendo assim a filosofia à teologia: “depois que Descartes tirou a filosofia dos bancos da escola e a emancipou, restituindo-lhe o seu verdadeiro método, o psicológico, e a sua única autoridade, a da razão [...] depois dos trabalhos dos seus ilustres continuadores [...] vaidade fora recomeçar [...] como se nada estivesse feito” (Fatos do espírito humano, III).
Em Gonçalves de Magalhães, a visão crítica da cultura brasileira se dá em face do ideário iluminista francês, especialmente das idéias de Rousseau. Ao promover a reforma da literatura, mediante a introdução do romantismo, ele valeu-se da idéia rousseauniana de pátria no intuito de integrar no espaço de uma mesma experiência histórica homens educados para a vida contemplativa:
"Ainda hoje o trabalho do literato, longe de lhe assegurar [...] um título de mais ao reconhecimento público, parece ao contrário desmerecê-lo, e desviá-lo da liga dos homens positivos, que desdenhosos dizem: é um poeta! [...] como se dissesse: eis aí um ocioso, um parasita, que não pertence a este mundo [...] Aí canta o poeta por mera inspiração celeste, por essa necessidade de cantar, para dar desafogo ao coração [...] mas logo que a idéia de pátria apareceu aos poetas, começaram eles a invocá-la [...] Com a expiração do domínio português muito se desenvolveram as idéias. Hoje o Brasil é filho da civilização francesa, e como nação é filho dessa revolução famosa." (Discurso sobre a história da literatura do Brasil) [9]
Nessa mesma linha, ele argumenta contra o uso ilimitado da razão, quando afirma, em sua obra filosófica mais importante, Fatos do espírito humano, que “o corpo não nos foi dado como uma condição de saber e de querer, mas como uma sujeição que coarctasse esse poder livre, de que abusaríamos, chamando-nos à vida prática”[10]; ou ainda quando afirma, no mesmo lugar, que Deus nos criou para saber e poder, referindo-se então à capacidade humana de aperfeiçoar-se pela “faculdade de inventar, testemunhada pelas ciências progressivas”. Compreende-se, assim, porque ele não levou a sério os apologistas do “bom selvagem”, a exemplo de Antonio Pereira de Souza Caldas (1762-1814), autor de uma Ode ao bom selvagem:[11]
"Caldas, o primeiro dos nossos líricos, tão cheio de saber, e que pudera ter sido o reformador da nossa Poesia [...] nem sempre se apoderou desta idéia [...] e quando ele é original causa mesmo dó que cantasse o homem selvagem de preferência ao civilizado, como se aquele a este superasse." (Suspiros poéticos e saudades, Lede)
Assim como Rousseau, Gonçalves de Magalhães confere à nação uma alma e um futuro a realizar, o que implica o livre comprometimento de cada um com o destino do país como um todo[12]: "Não, oh! Brasil, no meio do geral movimento tu não deves ficar imóvel e apático, como o colono sem ambição, e sem esperanças" (Discurso sobre a história da literatura do Brasil). Nesse quadro, o sentido vieiriano da liberdade como indiferença é uma espécie de ranço colonial:
"Podia Deus sem dúvida criar uma sociedade de espíritos puros, não obrigados a coisa alguma, não sujeitos à menor dor, seres angélicos que vivessem em uma eterna bem-aventurança, só contemplando as maravilhas do seu criador. Mas qual seria o mérito desses espíritos para tanta ventura? Necessita Deus de admiradores inúteis?" (Fatos do espírito humano, XV)
Como justificar, entretanto, que a sociedade brasileira se emancipasse da tutela portuguesa, constituindo-se num Estado soberano, e ainda mantivesse como lícito e legítimo o regime escravista da fase colonial? Aparentemente, uma contradição. Mas Gonçalves de Magalhães tomou a si o desafio. O primeiro passo foi vincar o sentido de contingência da liberdade de arbítrio referente à luta contra a luta pela existência natural: “Mas o que seria então a liberdade humana, se estivesse inteiramente subjugada a instintos naturais? Qual seria o nosso mérito, se nenhum obstáculo se nos apresentasse?” (idem). Em seguida, ele procurou mostrar que a condição ontológica dos escravos, definido como “entes sem liberdade, sem virtudes nem vícios, sem bens nem males, todos de acordo e uniformes obedecendo a uma só vontade sempre justa” (ibidem), não é inconciliável com a forma da vida pela qual podemos ser “justos por nós mesmos, virtuosos e sábios pelos nossos próprios esforços, e não um rebanho de máquinas, obedecendo cegamente a uma vontade soberana” (ibidem); finalmente, concluiu seu argumento mediante a afirmação categórica de que “uma sociedade de homens livres [...] não exclui a outra, nem é por ela excluída” (ibidem). Em outras palavras, Gonçalves de Magalhães viu com clareza que a coexistência costumeira de senhores e escravos não era a causa da indiferença de muitos às vicissitudes da vida política brasileira, senão o efeito de uma experiência histórica fundada no sentido interno da liberdade como indiferença. Parece-nos, assim, que sua compreensão da escravidão no Brasil se apóia num reparo de Rousseau a Aristóteles, quando este afirma, na Política, que os homens não são naturalmente iguais, sendo uns nascidos para a escravidão e outros para o domínio. “Tinha razão Aristóteles”, diz Rousseau, “porém tomava o efeito pela causa” (O contrato social I, II).
Segundo Rousseau, quando os sujeitos que se obrigam reciprocamente no contrato permanecem, apesar desta obrigação, em seu estado de indiferença; ou, quando os indivíduos instituem um poder soberano ao qual se submetem indiferentemente; dessa reunião não resulta nenhuma unidade autêntica, porque esta não é possível mediante coação, senão pela liberdade. Tal liberdade, porém, não significa a exclusão da obrigação, pelo contrário, significa a sua rigorosa necessidade; nem significa que esta obrigação é a de uma vontade individual submetida a outra; trata-se de uma vontade individual que, contando com o uso da razão, faz da vontade geral a sua própria vontade. Daí que não pode ser uma vontade indiferente. Eis as palavras de Rousseau:
"O que o homem perde pelo contrato social é a liberdade natural e um direito ilimitado a tudo quanto deseja e pode alcançar; o que com ele ganha é a liberdade civil e a propriedade de tudo o que possui [...] poder-se-ia acrescentar à aquisição do estado civil a liberdade moral, a única que torna o homem verdadeiramente senhor de si, porquanto o impulso do mero apetite é escravidão, e a obediência à lei que se prescreveu a si mesmo é liberdade." (O contrato social I, VIII)
Para concluir, desejamos chamar a atenção para o fato de que se é no contexto do Iluminisno francês que Gonçalves de Magalhães se inspira para promover a modernização da cultura brasileira, sua atitude aponta para uma discussão em torno ao conceito da liberdade que se encontra no limiar da filosofia moderna, sem a qual talvez não fosse possível Descartes afirmar que a indiferença é o mais baixo grau da liberdade:
"para que eu seja livre, não é necessário que eu seja indiferente na escolha de um ou de outro dos dois contrários; mas antes, quanto mais eu pender para um, seja porque eu conheça evidentemente que o bom e o verdadeiro aí se encontrem, seja porque Deus disponha assim o interior do meu pensamento, tanto mais livremente o escolherei e o abraçarei [...] De maneira que esta indiferença que sinto, quando não sou absolutamente impelido para um lado mais do que para outro pelo peso de alguma razão, é o mais baixo grau da liberdade, e faz parecer mais uma carência no conhecimento do que uma perfeição na vontade" (Meditações, IV)

Referências bibliográficas
Antonio Vieira

Sermões. Organização de Alcir Pécora. São Paulo: Hedra, 2000-2001, 2 vols.
Cartas do Brasil. Organização de João Adolfo Hansen. São Paulo: Hedra, 2003.
Gonçalves de Magalhães
Suspiros poéticos e saudades, poemas (1836); 5ª ed., Brasília: UnB/INL, 1986.
Ensaio sobre a História da Literatura do Brasil (1836); republicado sob o título Discurso sobre a História da Literatura do Brasil (1865); in: Fatos do espírito humano. Petrópolis: Vozes/Academia Brasileira de Letras, 2004.
Filosofia da Religião (1836); in: Factos do espírito humano. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2001.
Discurso sobre o Objeto e Importância da Filosofia (1842); in: Factos do espírito humano. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2001.
A Origem da Palavra (1844); in: Factos do espírito humano. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2001.
Fatos do espírito humano (1858); 3ª ed., com Prefácio de Luiz Alberto Cerqueira. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2001; 4ª ed., com organização e estudo introdutório por Luiz Alberto Cerqueira. Petrópolis: Vozes/Academia Brasileira de Letras, 2004.
A alma e o cérebro - estudos de psicologia e fisiologia (1876).
Comentários e pensamentos (1880).
Cartas a Monte Alverne (incluindo cartas de Manuel de Araújo Porto Alegre ao mesmo destinatário). Apresentação e notas de Roberto Lopes. São Paulo: Conselho Estadual de Cultura, 1964.

Notas
[1] Cf. Tomás de Aquino, Summa contra gentiles III, 112-118, onde ele esclarece que a fé carece de um componente intelectual, pois seria impossível amar a Deus sem captar, intelectualmente falando, a visão do summum bonum. Além disso, seria necessário o complemento deliberado do amor (caritatem), no sentido de que somente pela vontade se realiza o que se concebeu pelo intelecto. Isto, entretanto, não quer dizer que tal relação de amizade dependeria de um mero impulso humano, pois supõe também a atuação da graça divina que eleva, por transferência, a natureza humana. O uso analógico do conceito aristotélico de forma permite a Tomás de Aquino descrever a infusão da graça como sendo a fé formada pelo amor, ou seja, a vontade humana transformada e orientada para a vontade de Deus. Cf. também Antonio Vieira, Sermão XIV, da série Maria Rosa Mística: “Os Filósofos antigos, definindo a verdadeira amizade [...] disseram: Amicus est alter ego: O amigo é outro eu. Logo enquanto o amigo é eu, Ego, eu e ele somos um; e enquanto ele é outro, Alter, ele e eu somos dois, mas ambos os mesmos, e isto é o que obrou sem milagre, por transformação recíproca, o amor de Jesus em João”. Para a doutrina aristotélico-tomista segundo a qual o conhecimento não é princípio de ação se não se acrescenta uma inclinação para produzir efeito, cf. Tomás de Aquino, Summa theologiae, q. 14, a. 8; cf. também Aristóteles, Metaph. IX, 3-4.
[2] Como sabemos, a Ratio Studiorum, conjunto de regras para a organização dos colégios jesuítas, cujo texto definitivo é de 1599, serviu para estabelecer no Brasil Colônia, durante dois séculos, e em caráter oficial, o que e como ensinar filosofia com vista ao “conhecimento do Criador”.
[3] Segundo Tomás de Aquino, importa sustentar que “Deus é causa das coisas por sua vontade, e não por necessidade de sua natureza [...] porque o ser que age por natureza necessita que um entendimento superior lhe predetermine o fim e os meios necessários para alcançá-lo, como o arqueiro predetermina o alvo e o impulso da flecha” (Summa theologiae, q. 19, a. 4).
[4] Cf. Luis de Molina: “Quo pacto illud agens liberum dicitur quod positis omnibus requisitis ad agendum potest agere et non agere aut ita agere unum ut contrarium etiam agere possit.” Concórdia: Disputa 2, 3; p. 14.
[5] A fonte é a doutrina aristotélico-tomista. Cf. Aristóteles, Política I, 2; Tomás de Aquino, Regimento dos príncipes.
[6] A fonte desse entendimento na filosofia cristã é Agostinho: “quando queria ou não queria alguma coisa, tinha certeza absoluta de que quem queria ou não queria não era outro senão eu [...] E aquilo que fazia contra vontade via que era mais padecer do que fazer” (Confess. VII, III, 5).
[7] A fonte é Aristóteles, Ética a Nicômaco I, 1.
[8] Representativos dessa fase de aproximação ao espírito moderno são os nomes de Antonio Pereira de Souza Caldas (Rio de Janeiro, 1762-1814); D. José Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho (1742-1831), fundador do Seminário de Olinda; José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838), naturalista; Frei Francisco do Monte Alverne (1784-1858), mestre de filosofia de Gonçalves de Magalhães, ao qual revelou o caminho da Ilustração francesa.
[9] Comparar com as palavras de Rousseau, ao referir-se ao perigo da atitude contemplativa: “Nascidas na ociosidade [as ciências], elas por sua vez a nutrem [...] se os trabalhos dos mais esclarecidos de nossos sábios [...] nos propiciam tão pouca utilidade [...] o que devemos pensar dessa multidão de escritores obscuros e de letrados ociosos, que em pura perda devoram a substância do Estado. O que estou dizendo? Ociosos? Quisera Deus que o fossem realmente! [...] esses declamadores vãos e fúteis andam por toda a parte [...] solapam os fundamentos da lei e aniquilam a virtude [...] Sorriem com desdém das antigas palavras pátria e religião” (Discurso sobre as artes e as ciências, Segunda Parte).
[10] Comparar também, quando Rousseau afirma que “Hobbes não viu que a mesma causa que impede os selvagens de usar da razão [...] impede-os ao mesmo tempo de abusar de suas faculdades” (Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, I).
[11] Do mesmo modo, quando Rousseau afirma que, considerando-se a história da humanidade, há que destacar, para além da indiferença, “outra qualidade muito específica que distingue [os homens], e sobre a qual não pode haver contestação: a faculdade de aperfeiçoar-se; faculdade essa que [...] desenvolve sucessivamente todas as demais” (idem, ibidem).
[12] Cf. Pierre Nora, “Nação”, in: François Furet e Mona Ozouf, Dicionário crítico da Revolução Francesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989.

Nenhum comentário: