José Mauricio de Carvalho (UFSJ)
O liberalismo é uma expressão do iluminismo inglês. Para sua constituição contribuíram as teses sobre a propriedade e a tolerância de John Locke (1632-1704) que incorporadas ao Bill of Rights (1689), deram sustentação à prática parlamentar inglesa no período. Através do liberalismo se universalizaram movimentos e projetos modernos como a confiança na ciência e o desejo de progresso. Em nome dele foram questionados: a concepção absolutista do poder e a visão religiosa da Idade Média. Para a renovação da cristandade na Inglaterra contribuíra a religião protestante e um deísmo que na formulação de Herbert de Cherbury († 1648) formula uma visão de Deus compatível com a organização física do universo. O papel do protestantismo neste processo foi avaliado por Max Weber, como explicou recentemente Rubens Campante:
“O que o argumento weberiano tenta demonstrar, portanto, é simplesmente que, naquele contexto específico dos séculos XVI e XVII, a ética protestante veio a ser o elemento catalisador final de um longo processo de superação da civilização tradicional” (p. 6).
Ele tem razão. A adesão ao protestantismo renovou a moral medieval e auxiliou na defesa da liberdade do indivíduo frente ao Estado. A abertura à riqueza proposta pelos protestantes ajudou na incorporação da idéia de progresso material da sociedade.
Na formulação original do liberalismo a classe proprietária dos bens é que se fazia representar no Poder Legislativo. A esta prática política somam-se as teses sobre a liberdade econômica e a riqueza das nações elaborada no século XVIII por Adam Smith (1723-1790). As idéias de Smith se ajustaram bem no ambiente britânico porque Locke já indicara, tendo por pano de fundo a ética protestante, os motivos pelos quais propriedade e riqueza eram dignificantes da condição humana. Ao longo do século XIX o debate envolvendo o aperfeiçoamento da representação acabou aproximando as idéias liberais da prática democrática. Numa perspectiva política o liberalismo de Locke criou os instrumentos para a defesa dos direitos individuais, a divisão do poder político e as idéias pedagógicas do livre desenvolvimento do indivíduo.
A compreensão adequada do pensamento liberal é uma exigência atual, especialmente depois do fracasso histórico do marxismo. Apesar do insucesso do marxismo lembra Paim (2007): “alguns contextos culturais revelaram-se extremamente receptivos à promessa irresponsável (de que o fim do capitalismo traria prosperidade geral)” (p. 29). O estudo da formulação inicial do liberalismo também é importante porque esteve na base da constituição do Estado Brasileiro. O liberalismo esteve na base da organização política, social e econômica do Brasil que recebeu D. João VI em 1808 e permaneceu em alta nas décadas seguintes quando foi construído o alicerce do país independente. O pensamento liberal brasileiro originário reproduziu dificuldades herdadas do iluminismo português, fato que afetou seu desenvolvimento posterior. Sua adequada compreensão envolve componentes que procuro clarear nesta comunicação.
Partimos de uma caracterização do debate moral realizado durante o período colonial e analisamos, em seguida, as teses políticas de Hipólito da Costa, o liberalismo ético normativo do Visconde de Cairu, o filosófico-político de Silvestre Pinheiro Ferreira e o católico de Diogo Feijó tomando-os como expressões representativas do liberalismo brasileiro nas primeiras décadas do século XIX.
A moralidade contra-reformista em Portugal
No livro Caminhos da moral moderna, a experiência luso brasileira (1995) dividimos em três períodos o tempo histórico que Joaquim de Carvalho denomina Segunda Escolástica. Ele reconheceu apenas a existência de um período barroco e outro escolástico. Dividir a Segunda Escolástica em três períodos esclarece melhor as variações do modelo ético ali encontrado. O primeiro momento, identificado com o século XVI, aproximou o debate moral da preocupação renascentista, atribuindo-lhe um sentido humanista que abrandou o rigor das máximas medievais. São representantes mais notáveis deste período Frei Heitor Pinto (1528-1584) cuja obra marcante é Imagem da vida cristã, Frei Amador Arrais (1530-1600) e Pe. Manoel de Góis (1524-1597), autor das famosas Disputas do Curso Conimbricense sobre os livros de moral a Nicômaco. “Crescendo nele os ideais humanistas e a atividade comercial era inevitável que se interrogasse se estaria nisso a trilha da felicidade” (Carvalho, 1995, p. 55). Os moralistas mencionados entendem que a felicidade desejada por todos vem da aproximação com Deus. Acrescentam, no entanto, que a construção de um Estado atuante anteciparia a formação de uma sociedade justa e feliz cuja concretização definitiva seria o céu. Os moralistas aceitam, pois, o progresso geral do Estado.
Na medida em que o racionalismo cartesiano se sobrepôs ao jus naturalismo tomista, como dissemos em Meditação sobre os caminhos da moral na gênese do tradicionalismo luso brasileiro (1995): “a discussão moral voltou-se quase exclusivamente para o projeto restrito da felicidade pessoal, o controle de qualquer efeito não intencional da conduta, ou melhor, a se concentrar na conquista das virtudes que levariam à paz interior após a morte” (p. 83). É isto o que caracteriza o segundo período do qual são representantes mais notáveis: Frei Antônio das Chagas (1631-1682), autor de Cartas espirituais e Pe Manoel Bernardes (1644-1710), que escreveu Estímulo prático para seguir o bem e fugir do mal; Pe. Manoel Fernandes, autor de Alma instruída na doutrina cristã, Pe. Antônio Vieira, notável escritor dos Sermões e Frei Sabino Bononiense, que escreveu Luz moral. Os discursos morais desse período restringem felicidade à salvação eterna. O projeto moral perdeu amplitude de horizontes, porque a conduta fica reduzida a princípios rigorosamente ditados pela razão para a conquista da salvação da alma. Esta distinção é imprescindível, os moralistas do segundo período abafaram a idéia da riqueza do Estado em nome da pureza interior.
O terceiro período, que não aparece nas referências de Joaquim de Carvalho, é marcado pelo esforço para demonstrar que a existência humana tinha um sentido mais amplo do que a salvação, embora suas conclusões estivessem longe dos ideais modernos. Este terceiro momento coincide com a geração pombalina. Se a vida humana individual continuava sem uma razão maior do que a salvação, a ela se adicionava uma finalidade terrena: o gerenciamento de bens com vistas ao desenvolvimento do Estado, ao qual se submetia à prática da ciência. É esse o ideal pombalino que resume o iluminismo português, a incorporação do progresso do Estado. Os autores mais representativos desse período são: Teodoro de Almeida (1722-1804), Antônio Soares Barbosa (1724-1801) e Bento José de Souza Farinha (1740-1820). O primeiro adota um ecletismo filosófico, rompendo com os moralistas do ciclo anterior. Soares Barbosa, autor de Discurso sobre o bom e verdadeiro gosto da Filosofia (1776), elabora importante investigação moral no livro Tratado elementar de Filosofia Moral (1792). Nesse livro, conclui que a moral está ligada estreitamente a Deus e depende da religião. Considera a virtude fonte da felicidade e afirma que ela decorre do cumprimento das leis que Deus deu aos homens. Os dois filósofos dialogam com autores modernos, mas recusam a fundamentação racional da ética. O primeiro preserva a dependência da moral à religião e o monopólio da Igreja Católica no estabelecimento da moral social, o segundo submete o fundamento da moral ao Estado. Souza Farinha, por sua vez, propõe uma fundamentação divina ao direito natural. Ele justifica o ideal moral tradicional, tanto o seu caráter eudemonista, como a condenação da ambição, avareza e deleite, isto é, riqueza e sexo. Como indica Paim no item III do primeiro capítulo da História das idéias filosóficas no Brasil (1997), esta mentalidade foi compartilhada no Brasil.
O liberalismo político de Hipólito José da Costa Pereira Furtado Mendonça
Hipólito da Costa nasceu na Colônia do Sacramento em 1774 e morreu em Londres no ano de 1823. Depois que a Colônia foi devolvida à coroa espanhola sua família mudou-se para Pelotas, RS, cidade onde ele passou sua adolescência. Iniciou seus estudos em Porto Alegre e, mais tarde, cursou Leis, Filosofia e Matemática (1789) na Universidade de Coimbra, em Portugal. Concluído o curso viajou para os Estados Unidos a serviço da Coroa Portuguesa para estudar as técnicas industriais daquele país. Ali residiu por dois anos e tomou contato com o pensamento liberal. No seu retorno a Portugal foi preso (1802) e acusado de participar da maçonaria. Conseguiu fugir da prisão (1805) e depois de passar pela Espanha se estabeleceu em Londres. Obteve a cidadania inglesa comprando ações do Banco da Escócia. Mais tarde casou-se Mary Ann Sheley (1817) com quem teve três filhos. Na capital britânica fundou o jornal Correio Brasiliense (1808), que se tornou um dos mais importantes periódicos do Império Português no período. O jornal foi proibido de circular por D. João VI, mas o prestígio de Hipólito da Costa manteve-se alto e o periódico continuou a ser distribuído até sua morte. Pelo prestígio que alcançou foi convidado para ser Ministro na Confederação do Equador (1817), mas recusou o convite. Morreu na capital britânica sem saber que o Imperador Pedro I o nomeara cônsul brasileiro em Londres.
Depois de preso pela Inquisição sob a acusação de divulgar idéias maçons (1802 - 1805), Hipólito da Costa concentrou-se na veiculação do liberalismo. Ele entendia que, ao ter sido ratificado por Cortes a autonomia do Condado Portucalense, que marca a fundação de Portugal, a audiência aos súditos precedera a experiência inglesa de respeito ao cidadão. Para ele esta tradição presente no liberalismo político era suficiente para proteger os cidadãos das arbitrariedades do Estado e assegurava a abertura da mentalidade nacional ao pensamento moderno. Não lhe pareceu necessário enfrentar diretamente as teses contra-reformistas presentes na tradição portuguesa. Contesta o democratismo francês, movimento adversário da monarquia liberal. Conforme lembra Paim (1997): “Para o redator do Correio Brasiliense, o partido francês, em Portugal, representava o principal obstáculo ao aperfeiçoamento da monarquia” (p. 135). Pela tendência de confronto com o liberalismo mais radical a meditação de Hipólito da Costa não evoluiu para teses construtivas do liberalismo, ficando este trabalho para a geração seguinte. Afirma Paim (1968): “a incorporação do liberalismo seria sucessivamente postergada para, afinal, só se explicitar plenamente no período posterior à independência” (p. 55). A posição adotada por Hipólito da Costa mostra o quão importante para o desenvolvimento das idéias liberais foi o papel da geração que se seguiu.
O liberalismo ético normativo de Cairu
José da Silva Lisboa, Visconde de Cairu, era baiano e viveu de 1756 a 1835. Herdeiro intelectual de Adam Smith, Cairu avaliou de forma singular o projeto ético- normativo, econômico e social contido em A Riqueza das Nações. O livro clássico de Smith concebido como trabalho moral foi importante na formação da economia como ciência. A obra permitiu entender as relações humanas baseadas num ideário normativo que conjuga os interesses individuais com a construção de benefícios sociais. Assim foi porque além dos temas operativos que alimentam a economia como ciência, capital final e circulante, teoria dos juros, volume da população, etc, Smith abordou objetivos e fins da existência humana, assuntos que envolvem a responsabilidade e a liberdade. Ele nos apresenta o ideal de uma vida singular a ser construída no esforço diuturno para atender nossas necessidades.
Há um aspecto básico no liberalismo: trata-se de uma teoria da vida pensada como liberdade e entendida como realização subjetiva. A existência singular merece ser protegida da arbitrariedade estatal porque associa a liberdade pessoal à responsabilidade. Assim, o liberalismo resguarda o funcionamento da vida social pelo cumprimento de leis escritas e pela tolerância, como propôs John Locke, mas especialmente assegura a sobrevivência coletiva do grupo porque apresenta o trabalho como fonte de valores. Conforme o propósito de Smith, o trabalho livre e responsável assegura a vida coletiva e enriquece os Estados, resguardando o ideal de homem como subjetividade livre. Para a realização destes ideais é que estrutura a doutrina econômica que se torna uma teoria sólida, com temas específicos.
O Visconde de Cairu leu A Riqueza das Nações, concluindo que a adoção das teses econômicas do liberalismo eram adequadas ao Brasil, que recebia um Rei determinado a superar o atraso econômico e social de sua colônia. A adoção das práticas liberais, ele acredita, propiciaria o aperfeiçoamento moral dos cidadãos, lançando o país numa era de progresso e desenvolvimento.
Assumindo o liberalismo como ideal de vida, Cairu aponta uma rota para a intelectualidade brasileira incorporar o pensamento moderno e estar à altura de seu tempo. Como já dissemos (1995) o “liberalismo ético normativo de Cairu integra o conceito iluminista de valorização do homem que supera o teocentrismo medievo, a outro conceito iluminista, a saber, o de progresso permanente” (p. 124). Portanto, o Visconde via na obra de Smith uma forma de preparar o país para superar problemas históricos e adotar um pensamento moderno. Ele demonstra confiança na economia política para viabilizar a vida pessoal, funcionar como elemento de coesão das ciências, assegurar a vida coletiva e servir de guia para a própria existência. Cairu reconhece que esta forma de entender o liberalismo era própria dos intérpretes ingleses de Smith daquele momento.
Cairu afirma em ensaio publicado após sua morte (1851) que a aplicação dos princípios liberais não afetava os destinos da monarquia portuguesa, antes o contrário se daria, o desenvolvimento do Brasil conferia ao rei português “uma glória que nenhum grande soberano ou Estado jamais teve” (p. 26). Os acontecimentos históricos que se seguiram à independência o levaram a abandonar este entendimento. Os movimentos rebeldes nas províncias que contestavam a autoridade monárquica ou a incapacidade do regime de oferecer maior igualdade entre os homens permitiram-lhe desconfiar do liberalismo como projeto ético normativo e a procurar fundamentos mais estáveis para a moral. Ele foi buscar este princípio na moral católica, acompanhando os intelectuais portugueses como Pascoal José de Melo Freire que conclui que a modernização dos costumes e das leis não podia prescindir da moral católica.
Nos últimos anos de vida concluiu que a universalidade da ética não pode depender da força de simpatia ou da utilidade como quiseram David Hume e Adam Smith. Também concluiu que o desenvolvimento material pura e simplesmente não assegurava a paz, a prosperidade e a estabilidade política. Na obra Constituição Moral e Deveres do Cidadão (1824), Cairu considera a incapacidade da razão e dos sentimentos estabelecerem sozinhos os rumos que garantissem o aprimoramento pessoal e o desenvolvimento automático das nações. As virtudes naturais não eram fruto das alterações da moral católica e não podiam prescindir dela. Por outro lado, não se podia também assumir uma moral cristã amplamente negativa da condição humana como o fora a tematização contra-reformista, cujos ciclos tivemos resumir no item anterior. Assim ele se insere no espírito da geração pombalina ao propor uma forma de desenvolvimento humano e material associado aos valores e virtudes cristãos. Na ocasião, ao lado das críticas ao ateísmo, também combate os excessos do utilitarismo com base no catolicismo.
O resultado deste esforço foi importante para colocar o país no espírito dos novos tempos, mas o resultado deixou-nos dificuldades ainda hoje não completamente superadas.
Na proporção em que avança em sua reflexão, Cairu desconsiderou a harmonia de interesses que se operava na vida social, independente das instituições ou tradições. Tendeu a tratar o problema como uma dicotomia que oscilava entre a paixão e a razão perdendo de vista a ordem cultural, aquela que Adam Smith havia denominado de mão invisível. O resultado foi uma síntese ampla onde se traçou o perfil de uma existência virtuosa (vícios, virtudes e deveres) inserida na conduta humana em geral (consciência moral, sentido da felicidade, fontes, leis e deveres morais). Ele também tratou do papel da liberdade e da vontade. Todo esse esforço especulativo revelou, contudo, uma inconsistência insuperável, a redução da doutrina dos valores a um ideal distante, traçado de antemão e voltado para obter a felicidade noutro mundo pela prática de virtudes que significavam a negação de uma existência humana. Silva Lisboa entendeu que pelo controle moral da economia o homem podia cumprir os desígnios de Deus, ocasião em que se revelam os pontos obscuros do projeto, herdeiro da insuficiência moral do pombalismo. Insuficiência que aparece em três níveis: primeiro na conciliação do propósito ético-religioso do liberalismo de Locke e Smith que aproxima a ação humana da vontade de Deus de modo irreconciliável com o ideal de salvação da Contra-reforma, segundo na fundamentação religiosa da ética na contramão da meditação moderna e terceiro na inadequada abordagem da ordem cultural que não se reduz aos instintos e nem é resultado de deliberação racional.
O liberalismo filosófico-político de Silvestre Pinheiro Ferreira
O filósofo, filho de fabricantes de seda, nasceu em Lisboa a 31 de dezembro de 1769 e morreu em 1 de julho de 1846, sendo sepultado no Cemitério dos Prazeres.
“A parcela do pensamento de Pinheiro Ferreira que merece maior destaque, pela influência que deixou no pensamento brasileiro é o exame do empirismo e a meditação sobre temas políticos. Suas idéias foram sistematicamente estudadas e suas principais obras reeditadas recentemente: Preleções filosóficas sobre a teórica do discurso e da linguagem, a Estética, a Dioceósina e a Cosmologia, publicadas em fascículos a partir de 1813, Categorias de Aristóteles (1814), Ensaios de Psicologia (1826), Constituição política do Império do Brasil e Carta Constitucional do Reino de Portugal (1830), Projetos de ordenações para Portugal (1831 / 1832), Manual do cidadão em um governo representativo (1834), Noções elementares de ontologia (1836), Noções elementares de filosofia geral e aplicada às ciências morais e políticas (1839), Teodicéia ou tratado elementar sobre a religião natural e a religião revelada (1845)”. (Carvalho, 2001. p. 51).
Silvestre Pinheiro Ferreira dedicou-se a muitas questões na fase em que se transferiu para o Brasil acompanhando Dom João VI. Ele preocupava-se em fundamentar o empirismo e estabelecer as bases do liberalismo político ou direito constitucional. A sua meditação sobre política é aqui o objeto principal de nossa atenção. Pinheiro Ferreira julgou necessário fundamentar a liberdade política, pois vivia num ambiente cultural onde o tema não era privilegiado. Os motivos eram a tradição absolutista da Coroa portuguesa e a tradição contra-reformista que preserva valores da cristandade medieva.
Para superar as dificuldades morais de nossa cultura, o filósofo decide estudar a relação entre a consciência e o corpo para justificar a ação livre. Ele reconhece que havia uma união entre o corpo e a alma, mas a última guardava autonomia. Tal autonomia parece-lhe um pressuposto para a liberdade. Ele a reconhece com base nas vivências interiores que coloca ao lado das sensações externas. Nas primeiras sustenta as ações voluntárias que caracterizam o agir humano e nas outras o instinto como ocorre nos animais.
A justificativa da liberdade para a ação era necessária para fundamentar a liberalização das instituições políticas. Este era o objetivo de parte da elite formada no espírito pombalino. O que o distingue dos demais integrantes daquela elite é pensar o liberalismo político inserido num sistema filosófico que estivesse em harmonia com a tradição portuguesa. É daí que vem o seu projeto de aproximar as idéias de Aristóteles daquelas presentes no empirismo. Ao fazê-lo encontra os meios de responder às objeções do iluminismo alemão que desenvolveu forte oposição a Aristóteles, bastando considerar a meditação de Kant. Os alemães combatiam também a dogmática católica, sustentada no aristotelismo e na escolástica.
A adoção da organicidade entre os poderes e a preocupação com a representação dos interesses fora tema do liberalismo político inglês. Pinheiro Ferreira, como Locke, sugere a monarquia constitucional como o sistema a ser implantado. Não havendo no Império Português experiência no assunto afirma que o fundamental para implantação deste sistema político era organizar a representação da sociedade, acompanhando Locke que, como lembra Paim (1987) “formulou a doutrina da representação como sendo de interesses” (p. 21).
A meditação política de Silvestre prolonga-se além da década de vinte estendendo-se pelos anos trinta, período em que vive refugiado em Paris. Ao exílio se obrigou porque as idéias liberais entram em descrédito depois do retorno da Corte a Portugal. Mesmo antes do retorno a Portugal, o rei e seus colaboradores próximos consideravam que os movimentos denominados liberais tinham pouca consistência teórica e prática, como era o caso da Revolução Pernambucana de 1817. Mesmo a revolução de 20 em Portugal revelava a inconsistência de intelectuais e políticos pouco conhecedores ou experimentados nas idéias liberais. Apesar da aliança com a Inglaterra, os portugueses não acompanhavam a evolução das idéias liberais no país aliado.
Pinheiro Ferreira convencera-se que não era possível virar as costas para os ideais modernos e esperava reformar as instituições, evitando o caminho das revoluções ou dos rompimentos bruscos com a tradição. Seu propósito era evitar as formas radicais assumidas pelo iluminismo francês que operou uma crítica radical ao cristianismo medieval optando por eliminá-lo ao invés de renová-lo e que em matéria de renovação política defendia a revolução. Pinheiro Ferreira deixou lições de aperfeiçoamento humano e social que constituem o ponto de partida da filosofia brasileira. O bem coletivo ou social foi pensado com base no utilitarismo de Bentham, mas a tese de Bentham, como a de Locke, mereceu adaptação. Não seria legítimo, explicou, em nome do bem do maior número, sacrificar os interesses de uma expressiva minoria. A questão dos interesses pede contínua negociação para não sacrificar a minoria, observa Esteves Pereira (1996):
“Os interesses deviam considerar o fato de que o maior bem do maior número (sem uma ponderação crítica) é um erro de transcendência (...), pois basta refletir que por esta definição, numa sociedade composta de duzentos sócios, noventa e nove serão sacrificados a cento e um” (p. 16).
O seu espírito conciliador e moderado se observa no documento que apresentou às Cortes em 4 de julho de 1821. Nele defende a soberania das Cortes, mas também a harmonia necessária entre elas e o rei. As leis votadas no parlamento precisavam do consentimento do monarca para entrar em vigor.
O aprofundamento destas idéias é tema do Manual do cidadão em um governo representativo, onde ele esclarece seu propósito de promover a transição de um governo historicamente absolutista para um sistema representativo. Acompanhando o liberalismo de então estabelece níveis de rendimentos econômicos para integrar o colégio eleitoral. Distingue os direitos do cidadão que nascem da lei, dos chamados direitos naturais, inerentes à sua condição humana.
A consciência dos problemas decorrentes da instabilidade política que vem da disputa pelo poder, mostra os motivos que o levaram a propor o Poder Moderador para assegurar o equilíbrio entre os poderes. Esse instituto seria capaz de mediar os elementos em conflito e harmonizar os poderes do Estado. A organização política que se desenvolve no segundo reinado tem um caráter próprio. Seus articuladores se afastam de algumas teses de Pinheiro Ferreira, mas elas foram referência para os liberais brasileiros que pensaram o Brasil independente.
O liberalismo católico de Diogo Antônio Feijó
Diogo Antônio Feijó nasceu na cidade de São Paulo em 3 de agosto de 1784 e ali morreu em 10 de novembro de 1843. Seguiu carreira eclesiástica e se ordenou em 25 de fevereiro de 1809. Sua obra fundamental foi publicada com o título de Cadernos de Filosofia e foi escrito entre 1818 e 1821.
O livro foi elaborado para servir de texto no curso que Feijó ministrou durante parte da vida que viveu em Itu. No livro Feijó iniciou suas reflexões repetindo as três perguntas consagradas por Kant: “que posso saber? (Crítica da Razão Pura), que devo fazer? (Crítica da Razão Prática) e que me é dado esperar? (Crítica do Juízo), o que revela conhecimento do kantismo” (Carvalho, 2000. p. 91). É também importante lembrar que Feijó se referia ao objeto da Metafísica como o fizera o filósofo alemão e não como propusera Antônio Genovesi (1713-1769). Para Feijó, Metafísica era a ciência de questões ligadas ao conhecimento humano (conteúdo, objeto e origem) e não uma teoria do ser.
Feijó desenvolve o seu conceito de filosofia como investigação sobre o entendimento humano, acompanhando Kant, mas não o segue quando estuda os problemas morais. A concepção de moral elaborada por Feijó revela que ele se aproximou do eudemonismo aristotélico-tomista e das teses de Genovesi, mantendo-se, no assunto, preso à influência do iluminismo lusitano. Como Kant entende a questão? Ele não queria uma vontade dirigida para fins outros que não a execução dos atos morais. Agir moralmente era, para ele, agir pelo dever. Quando uma ação não é comandada pela vontade de obedecer a lei, não é autônoma, logo não é moral. Quando se orienta para o cumprimento da lei a ação é moral e foi denominada de boa vontade. Portanto, moral é aquela escolha que orienta para o cumprimento da lei que comanda a ação.
Para Feijó, ao contrário do que pensou Kant, a filosofia moral é a ciência que trata dos deveres e meios de o homem alcançar a felicidade. Por natureza, o homem dispõe de um conjunto de forças que o levam à ação. Feijó distingue duas em constante disputa, o desejo de felicidade e amor, que orienta para os próprios interesses, e o dever, que obriga a agir nobremente. Em resumo, assim é a natureza moral do homem: desejo da felicidade, fundado no egoísmo e amor da justiça, sentimento nobre e desinteressado, sustentado na estima de si; tudo iluminado por uma razão que descobre os fins dessas propensões e pela capacidade de agir livremente. É devido à liberdade que o homem abraça ou rejeita os objetos indicados pelas propensões ou oferecidos por sua razão.
As nossas ações, explica o pensador, são guiadas por uma lei superior que resulta das relações que têm os entes entre si. Essa lei é que nos leva a reconhecer Deus como Criador e a nele confiar. Descobrimos, olhando a natureza, que tudo tem uma razão, uma finalidade. Os corpos funcionam com vistas à manutenção da vida e às faculdades humanas para promoverem a perfeição moral. Depois de tratar o comportamento moral de modo cuidadoso, Feijó elaborou uma espécie de guia moral.
Esta investigação, tema do 3° Caderno, aparece resumidamente em O retrato do homem de honra e verdadeiro sábio. Nesse texto, Feijó explicou que a verdadeira sabedoria e felicidade consistem em temer a Deus e obter a salvação.
Foram muitas as suas indicações para uma vida moral. Desde o comer e beber com moderação, fugir dos jogos de azar, trabalhar com parcimônia, descansar o tempo necessário para recobrar as forças e voltar ao trabalho, respeitar a natureza do corpo e do espírito e até evitar discussões inúteis e caprichosas. O sacerdote se empenhou em mostrar que o trabalho é importante, que as riquezas materiais não são detestáveis se são usadas com fins nobres, que a moderação nos usos e costumes é o que melhor convém ao homem, que todos devem ser previdentes e buscar bens que garantam uma velhice tranqüila. Esse guia, se seguido, é o retrato do sábio, segui-lo “é receita de felicidade” (idem, p. 172).
A fragilidade do guia moral consiste em sugerir que a valorização da existência humana e dos bens deste mundo podiam ser feitos sem contraditar os valores veiculados na moral católica de índole contra-reformista, voltados exclusiva e unilateralmente para a religiosidade do homem e pela profunda desconfiança do mundo. Estas idéias resumem o programa de vida sugerido pelo liberalismo católico de Feijó, completado pela prática política que desenvolveu como político que chegou a regente do Império.
Considerações finais
A compreensão da liberdade como algo fundamental ao homem está base do pensamento liberal defendido no Segundo Reinado. Eduardo Ferreira França entende que a liberdade individual devia ser defendida frente aos órgãos do Estado, pois este não o reconhece naturalmente. Para melhor resguardar a liberdade mostra que a Constituição liberal evita que todo o poder fique concentrado num único poder, acompanhando Pinheiro Ferreira para quem o legislativo e o Rei deviam agir de modo harmonioso. A discussão moral anteriormente mencionada e a sua vida política permitiram o médico Ferreira França rever suas posições naturalistas. Com a afirmação da liberdade pessoal, a aceitação de um programa moral capaz de justificar a vida terrena e o entendimento de que o Estado a devia respeitar os indivíduos, completa-se, em meados do século, a superação do entendimento que o homem é criatura desprezível, vil bicho da terra veiculada pela cristandade medieval. Ainda assim resquícios da mentalidade contra-reformista permaneceram e reapareceram em diferentes momentos da história do Brasil. O aprimoramento da representação é outro tema de Pinheiro Ferreira que se tornará uma preocupação dos políticos do Segundo Reinado.
Bibliografia
CAIRU, Visconde de. Observações sobre a prosperidade do Estado pelos liberais princípios da nova legislação do Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa Régia, 1816.
______. Constituição moral e deveres do cidadão. Rio de Janeiro: Nacional, 1824.
______. Ensaio econômico sobre ao influxo da inteligência humana na riqueza e prosperidade das nações. Rio de Janeiro: Revista Guanabara, 1851.
CAMPANTE, Rubens G. A economia e seu espírito. Caderno Pensar. Estado de Minas. 26/04/2008. p. 6.
CARVALHO, José Maurício de Carvalho. Caminhos da moral moderna. Belo Horizonte: Itatiaia, 1995.
______. Curso de introdução à filosofia brasileira. Londrina: EDUEL, 2000.
______. Contribuições contemporâneas à história da filosofia brasileira. 3. ed. Londrina: EDUEL, 2001.
PAIM, Antônio. Cairu e o liberalismo econômico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1968.
______. Evolução histórica do liberalismo. Belo Horizonte: Itatiaia, 1987.
______. História das idéias filosóficas no Brasil. 5. ed. Londrina: EDUEL, 1997.
______. O liberalismo contemporâneo. 3. ed. Londrina: Humanidades, 2007.
PEREIRA, José Esteves. Introdução às Obras Escolhidas de Silvestre Pinheiro Ferreira. Lisboa: Banco de Portugal, 1996.
O liberalismo é uma expressão do iluminismo inglês. Para sua constituição contribuíram as teses sobre a propriedade e a tolerância de John Locke (1632-1704) que incorporadas ao Bill of Rights (1689), deram sustentação à prática parlamentar inglesa no período. Através do liberalismo se universalizaram movimentos e projetos modernos como a confiança na ciência e o desejo de progresso. Em nome dele foram questionados: a concepção absolutista do poder e a visão religiosa da Idade Média. Para a renovação da cristandade na Inglaterra contribuíra a religião protestante e um deísmo que na formulação de Herbert de Cherbury († 1648) formula uma visão de Deus compatível com a organização física do universo. O papel do protestantismo neste processo foi avaliado por Max Weber, como explicou recentemente Rubens Campante:
“O que o argumento weberiano tenta demonstrar, portanto, é simplesmente que, naquele contexto específico dos séculos XVI e XVII, a ética protestante veio a ser o elemento catalisador final de um longo processo de superação da civilização tradicional” (p. 6).
Ele tem razão. A adesão ao protestantismo renovou a moral medieval e auxiliou na defesa da liberdade do indivíduo frente ao Estado. A abertura à riqueza proposta pelos protestantes ajudou na incorporação da idéia de progresso material da sociedade.
Na formulação original do liberalismo a classe proprietária dos bens é que se fazia representar no Poder Legislativo. A esta prática política somam-se as teses sobre a liberdade econômica e a riqueza das nações elaborada no século XVIII por Adam Smith (1723-1790). As idéias de Smith se ajustaram bem no ambiente britânico porque Locke já indicara, tendo por pano de fundo a ética protestante, os motivos pelos quais propriedade e riqueza eram dignificantes da condição humana. Ao longo do século XIX o debate envolvendo o aperfeiçoamento da representação acabou aproximando as idéias liberais da prática democrática. Numa perspectiva política o liberalismo de Locke criou os instrumentos para a defesa dos direitos individuais, a divisão do poder político e as idéias pedagógicas do livre desenvolvimento do indivíduo.
A compreensão adequada do pensamento liberal é uma exigência atual, especialmente depois do fracasso histórico do marxismo. Apesar do insucesso do marxismo lembra Paim (2007): “alguns contextos culturais revelaram-se extremamente receptivos à promessa irresponsável (de que o fim do capitalismo traria prosperidade geral)” (p. 29). O estudo da formulação inicial do liberalismo também é importante porque esteve na base da constituição do Estado Brasileiro. O liberalismo esteve na base da organização política, social e econômica do Brasil que recebeu D. João VI em 1808 e permaneceu em alta nas décadas seguintes quando foi construído o alicerce do país independente. O pensamento liberal brasileiro originário reproduziu dificuldades herdadas do iluminismo português, fato que afetou seu desenvolvimento posterior. Sua adequada compreensão envolve componentes que procuro clarear nesta comunicação.
Partimos de uma caracterização do debate moral realizado durante o período colonial e analisamos, em seguida, as teses políticas de Hipólito da Costa, o liberalismo ético normativo do Visconde de Cairu, o filosófico-político de Silvestre Pinheiro Ferreira e o católico de Diogo Feijó tomando-os como expressões representativas do liberalismo brasileiro nas primeiras décadas do século XIX.
A moralidade contra-reformista em Portugal
No livro Caminhos da moral moderna, a experiência luso brasileira (1995) dividimos em três períodos o tempo histórico que Joaquim de Carvalho denomina Segunda Escolástica. Ele reconheceu apenas a existência de um período barroco e outro escolástico. Dividir a Segunda Escolástica em três períodos esclarece melhor as variações do modelo ético ali encontrado. O primeiro momento, identificado com o século XVI, aproximou o debate moral da preocupação renascentista, atribuindo-lhe um sentido humanista que abrandou o rigor das máximas medievais. São representantes mais notáveis deste período Frei Heitor Pinto (1528-1584) cuja obra marcante é Imagem da vida cristã, Frei Amador Arrais (1530-1600) e Pe. Manoel de Góis (1524-1597), autor das famosas Disputas do Curso Conimbricense sobre os livros de moral a Nicômaco. “Crescendo nele os ideais humanistas e a atividade comercial era inevitável que se interrogasse se estaria nisso a trilha da felicidade” (Carvalho, 1995, p. 55). Os moralistas mencionados entendem que a felicidade desejada por todos vem da aproximação com Deus. Acrescentam, no entanto, que a construção de um Estado atuante anteciparia a formação de uma sociedade justa e feliz cuja concretização definitiva seria o céu. Os moralistas aceitam, pois, o progresso geral do Estado.
Na medida em que o racionalismo cartesiano se sobrepôs ao jus naturalismo tomista, como dissemos em Meditação sobre os caminhos da moral na gênese do tradicionalismo luso brasileiro (1995): “a discussão moral voltou-se quase exclusivamente para o projeto restrito da felicidade pessoal, o controle de qualquer efeito não intencional da conduta, ou melhor, a se concentrar na conquista das virtudes que levariam à paz interior após a morte” (p. 83). É isto o que caracteriza o segundo período do qual são representantes mais notáveis: Frei Antônio das Chagas (1631-1682), autor de Cartas espirituais e Pe Manoel Bernardes (1644-1710), que escreveu Estímulo prático para seguir o bem e fugir do mal; Pe. Manoel Fernandes, autor de Alma instruída na doutrina cristã, Pe. Antônio Vieira, notável escritor dos Sermões e Frei Sabino Bononiense, que escreveu Luz moral. Os discursos morais desse período restringem felicidade à salvação eterna. O projeto moral perdeu amplitude de horizontes, porque a conduta fica reduzida a princípios rigorosamente ditados pela razão para a conquista da salvação da alma. Esta distinção é imprescindível, os moralistas do segundo período abafaram a idéia da riqueza do Estado em nome da pureza interior.
O terceiro período, que não aparece nas referências de Joaquim de Carvalho, é marcado pelo esforço para demonstrar que a existência humana tinha um sentido mais amplo do que a salvação, embora suas conclusões estivessem longe dos ideais modernos. Este terceiro momento coincide com a geração pombalina. Se a vida humana individual continuava sem uma razão maior do que a salvação, a ela se adicionava uma finalidade terrena: o gerenciamento de bens com vistas ao desenvolvimento do Estado, ao qual se submetia à prática da ciência. É esse o ideal pombalino que resume o iluminismo português, a incorporação do progresso do Estado. Os autores mais representativos desse período são: Teodoro de Almeida (1722-1804), Antônio Soares Barbosa (1724-1801) e Bento José de Souza Farinha (1740-1820). O primeiro adota um ecletismo filosófico, rompendo com os moralistas do ciclo anterior. Soares Barbosa, autor de Discurso sobre o bom e verdadeiro gosto da Filosofia (1776), elabora importante investigação moral no livro Tratado elementar de Filosofia Moral (1792). Nesse livro, conclui que a moral está ligada estreitamente a Deus e depende da religião. Considera a virtude fonte da felicidade e afirma que ela decorre do cumprimento das leis que Deus deu aos homens. Os dois filósofos dialogam com autores modernos, mas recusam a fundamentação racional da ética. O primeiro preserva a dependência da moral à religião e o monopólio da Igreja Católica no estabelecimento da moral social, o segundo submete o fundamento da moral ao Estado. Souza Farinha, por sua vez, propõe uma fundamentação divina ao direito natural. Ele justifica o ideal moral tradicional, tanto o seu caráter eudemonista, como a condenação da ambição, avareza e deleite, isto é, riqueza e sexo. Como indica Paim no item III do primeiro capítulo da História das idéias filosóficas no Brasil (1997), esta mentalidade foi compartilhada no Brasil.
O liberalismo político de Hipólito José da Costa Pereira Furtado Mendonça
Hipólito da Costa nasceu na Colônia do Sacramento em 1774 e morreu em Londres no ano de 1823. Depois que a Colônia foi devolvida à coroa espanhola sua família mudou-se para Pelotas, RS, cidade onde ele passou sua adolescência. Iniciou seus estudos em Porto Alegre e, mais tarde, cursou Leis, Filosofia e Matemática (1789) na Universidade de Coimbra, em Portugal. Concluído o curso viajou para os Estados Unidos a serviço da Coroa Portuguesa para estudar as técnicas industriais daquele país. Ali residiu por dois anos e tomou contato com o pensamento liberal. No seu retorno a Portugal foi preso (1802) e acusado de participar da maçonaria. Conseguiu fugir da prisão (1805) e depois de passar pela Espanha se estabeleceu em Londres. Obteve a cidadania inglesa comprando ações do Banco da Escócia. Mais tarde casou-se Mary Ann Sheley (1817) com quem teve três filhos. Na capital britânica fundou o jornal Correio Brasiliense (1808), que se tornou um dos mais importantes periódicos do Império Português no período. O jornal foi proibido de circular por D. João VI, mas o prestígio de Hipólito da Costa manteve-se alto e o periódico continuou a ser distribuído até sua morte. Pelo prestígio que alcançou foi convidado para ser Ministro na Confederação do Equador (1817), mas recusou o convite. Morreu na capital britânica sem saber que o Imperador Pedro I o nomeara cônsul brasileiro em Londres.
Depois de preso pela Inquisição sob a acusação de divulgar idéias maçons (1802 - 1805), Hipólito da Costa concentrou-se na veiculação do liberalismo. Ele entendia que, ao ter sido ratificado por Cortes a autonomia do Condado Portucalense, que marca a fundação de Portugal, a audiência aos súditos precedera a experiência inglesa de respeito ao cidadão. Para ele esta tradição presente no liberalismo político era suficiente para proteger os cidadãos das arbitrariedades do Estado e assegurava a abertura da mentalidade nacional ao pensamento moderno. Não lhe pareceu necessário enfrentar diretamente as teses contra-reformistas presentes na tradição portuguesa. Contesta o democratismo francês, movimento adversário da monarquia liberal. Conforme lembra Paim (1997): “Para o redator do Correio Brasiliense, o partido francês, em Portugal, representava o principal obstáculo ao aperfeiçoamento da monarquia” (p. 135). Pela tendência de confronto com o liberalismo mais radical a meditação de Hipólito da Costa não evoluiu para teses construtivas do liberalismo, ficando este trabalho para a geração seguinte. Afirma Paim (1968): “a incorporação do liberalismo seria sucessivamente postergada para, afinal, só se explicitar plenamente no período posterior à independência” (p. 55). A posição adotada por Hipólito da Costa mostra o quão importante para o desenvolvimento das idéias liberais foi o papel da geração que se seguiu.
O liberalismo ético normativo de Cairu
José da Silva Lisboa, Visconde de Cairu, era baiano e viveu de 1756 a 1835. Herdeiro intelectual de Adam Smith, Cairu avaliou de forma singular o projeto ético- normativo, econômico e social contido em A Riqueza das Nações. O livro clássico de Smith concebido como trabalho moral foi importante na formação da economia como ciência. A obra permitiu entender as relações humanas baseadas num ideário normativo que conjuga os interesses individuais com a construção de benefícios sociais. Assim foi porque além dos temas operativos que alimentam a economia como ciência, capital final e circulante, teoria dos juros, volume da população, etc, Smith abordou objetivos e fins da existência humana, assuntos que envolvem a responsabilidade e a liberdade. Ele nos apresenta o ideal de uma vida singular a ser construída no esforço diuturno para atender nossas necessidades.
Há um aspecto básico no liberalismo: trata-se de uma teoria da vida pensada como liberdade e entendida como realização subjetiva. A existência singular merece ser protegida da arbitrariedade estatal porque associa a liberdade pessoal à responsabilidade. Assim, o liberalismo resguarda o funcionamento da vida social pelo cumprimento de leis escritas e pela tolerância, como propôs John Locke, mas especialmente assegura a sobrevivência coletiva do grupo porque apresenta o trabalho como fonte de valores. Conforme o propósito de Smith, o trabalho livre e responsável assegura a vida coletiva e enriquece os Estados, resguardando o ideal de homem como subjetividade livre. Para a realização destes ideais é que estrutura a doutrina econômica que se torna uma teoria sólida, com temas específicos.
O Visconde de Cairu leu A Riqueza das Nações, concluindo que a adoção das teses econômicas do liberalismo eram adequadas ao Brasil, que recebia um Rei determinado a superar o atraso econômico e social de sua colônia. A adoção das práticas liberais, ele acredita, propiciaria o aperfeiçoamento moral dos cidadãos, lançando o país numa era de progresso e desenvolvimento.
Assumindo o liberalismo como ideal de vida, Cairu aponta uma rota para a intelectualidade brasileira incorporar o pensamento moderno e estar à altura de seu tempo. Como já dissemos (1995) o “liberalismo ético normativo de Cairu integra o conceito iluminista de valorização do homem que supera o teocentrismo medievo, a outro conceito iluminista, a saber, o de progresso permanente” (p. 124). Portanto, o Visconde via na obra de Smith uma forma de preparar o país para superar problemas históricos e adotar um pensamento moderno. Ele demonstra confiança na economia política para viabilizar a vida pessoal, funcionar como elemento de coesão das ciências, assegurar a vida coletiva e servir de guia para a própria existência. Cairu reconhece que esta forma de entender o liberalismo era própria dos intérpretes ingleses de Smith daquele momento.
Cairu afirma em ensaio publicado após sua morte (1851) que a aplicação dos princípios liberais não afetava os destinos da monarquia portuguesa, antes o contrário se daria, o desenvolvimento do Brasil conferia ao rei português “uma glória que nenhum grande soberano ou Estado jamais teve” (p. 26). Os acontecimentos históricos que se seguiram à independência o levaram a abandonar este entendimento. Os movimentos rebeldes nas províncias que contestavam a autoridade monárquica ou a incapacidade do regime de oferecer maior igualdade entre os homens permitiram-lhe desconfiar do liberalismo como projeto ético normativo e a procurar fundamentos mais estáveis para a moral. Ele foi buscar este princípio na moral católica, acompanhando os intelectuais portugueses como Pascoal José de Melo Freire que conclui que a modernização dos costumes e das leis não podia prescindir da moral católica.
Nos últimos anos de vida concluiu que a universalidade da ética não pode depender da força de simpatia ou da utilidade como quiseram David Hume e Adam Smith. Também concluiu que o desenvolvimento material pura e simplesmente não assegurava a paz, a prosperidade e a estabilidade política. Na obra Constituição Moral e Deveres do Cidadão (1824), Cairu considera a incapacidade da razão e dos sentimentos estabelecerem sozinhos os rumos que garantissem o aprimoramento pessoal e o desenvolvimento automático das nações. As virtudes naturais não eram fruto das alterações da moral católica e não podiam prescindir dela. Por outro lado, não se podia também assumir uma moral cristã amplamente negativa da condição humana como o fora a tematização contra-reformista, cujos ciclos tivemos resumir no item anterior. Assim ele se insere no espírito da geração pombalina ao propor uma forma de desenvolvimento humano e material associado aos valores e virtudes cristãos. Na ocasião, ao lado das críticas ao ateísmo, também combate os excessos do utilitarismo com base no catolicismo.
O resultado deste esforço foi importante para colocar o país no espírito dos novos tempos, mas o resultado deixou-nos dificuldades ainda hoje não completamente superadas.
Na proporção em que avança em sua reflexão, Cairu desconsiderou a harmonia de interesses que se operava na vida social, independente das instituições ou tradições. Tendeu a tratar o problema como uma dicotomia que oscilava entre a paixão e a razão perdendo de vista a ordem cultural, aquela que Adam Smith havia denominado de mão invisível. O resultado foi uma síntese ampla onde se traçou o perfil de uma existência virtuosa (vícios, virtudes e deveres) inserida na conduta humana em geral (consciência moral, sentido da felicidade, fontes, leis e deveres morais). Ele também tratou do papel da liberdade e da vontade. Todo esse esforço especulativo revelou, contudo, uma inconsistência insuperável, a redução da doutrina dos valores a um ideal distante, traçado de antemão e voltado para obter a felicidade noutro mundo pela prática de virtudes que significavam a negação de uma existência humana. Silva Lisboa entendeu que pelo controle moral da economia o homem podia cumprir os desígnios de Deus, ocasião em que se revelam os pontos obscuros do projeto, herdeiro da insuficiência moral do pombalismo. Insuficiência que aparece em três níveis: primeiro na conciliação do propósito ético-religioso do liberalismo de Locke e Smith que aproxima a ação humana da vontade de Deus de modo irreconciliável com o ideal de salvação da Contra-reforma, segundo na fundamentação religiosa da ética na contramão da meditação moderna e terceiro na inadequada abordagem da ordem cultural que não se reduz aos instintos e nem é resultado de deliberação racional.
O liberalismo filosófico-político de Silvestre Pinheiro Ferreira
O filósofo, filho de fabricantes de seda, nasceu em Lisboa a 31 de dezembro de 1769 e morreu em 1 de julho de 1846, sendo sepultado no Cemitério dos Prazeres.
“A parcela do pensamento de Pinheiro Ferreira que merece maior destaque, pela influência que deixou no pensamento brasileiro é o exame do empirismo e a meditação sobre temas políticos. Suas idéias foram sistematicamente estudadas e suas principais obras reeditadas recentemente: Preleções filosóficas sobre a teórica do discurso e da linguagem, a Estética, a Dioceósina e a Cosmologia, publicadas em fascículos a partir de 1813, Categorias de Aristóteles (1814), Ensaios de Psicologia (1826), Constituição política do Império do Brasil e Carta Constitucional do Reino de Portugal (1830), Projetos de ordenações para Portugal (1831 / 1832), Manual do cidadão em um governo representativo (1834), Noções elementares de ontologia (1836), Noções elementares de filosofia geral e aplicada às ciências morais e políticas (1839), Teodicéia ou tratado elementar sobre a religião natural e a religião revelada (1845)”. (Carvalho, 2001. p. 51).
Silvestre Pinheiro Ferreira dedicou-se a muitas questões na fase em que se transferiu para o Brasil acompanhando Dom João VI. Ele preocupava-se em fundamentar o empirismo e estabelecer as bases do liberalismo político ou direito constitucional. A sua meditação sobre política é aqui o objeto principal de nossa atenção. Pinheiro Ferreira julgou necessário fundamentar a liberdade política, pois vivia num ambiente cultural onde o tema não era privilegiado. Os motivos eram a tradição absolutista da Coroa portuguesa e a tradição contra-reformista que preserva valores da cristandade medieva.
Para superar as dificuldades morais de nossa cultura, o filósofo decide estudar a relação entre a consciência e o corpo para justificar a ação livre. Ele reconhece que havia uma união entre o corpo e a alma, mas a última guardava autonomia. Tal autonomia parece-lhe um pressuposto para a liberdade. Ele a reconhece com base nas vivências interiores que coloca ao lado das sensações externas. Nas primeiras sustenta as ações voluntárias que caracterizam o agir humano e nas outras o instinto como ocorre nos animais.
A justificativa da liberdade para a ação era necessária para fundamentar a liberalização das instituições políticas. Este era o objetivo de parte da elite formada no espírito pombalino. O que o distingue dos demais integrantes daquela elite é pensar o liberalismo político inserido num sistema filosófico que estivesse em harmonia com a tradição portuguesa. É daí que vem o seu projeto de aproximar as idéias de Aristóteles daquelas presentes no empirismo. Ao fazê-lo encontra os meios de responder às objeções do iluminismo alemão que desenvolveu forte oposição a Aristóteles, bastando considerar a meditação de Kant. Os alemães combatiam também a dogmática católica, sustentada no aristotelismo e na escolástica.
A adoção da organicidade entre os poderes e a preocupação com a representação dos interesses fora tema do liberalismo político inglês. Pinheiro Ferreira, como Locke, sugere a monarquia constitucional como o sistema a ser implantado. Não havendo no Império Português experiência no assunto afirma que o fundamental para implantação deste sistema político era organizar a representação da sociedade, acompanhando Locke que, como lembra Paim (1987) “formulou a doutrina da representação como sendo de interesses” (p. 21).
A meditação política de Silvestre prolonga-se além da década de vinte estendendo-se pelos anos trinta, período em que vive refugiado em Paris. Ao exílio se obrigou porque as idéias liberais entram em descrédito depois do retorno da Corte a Portugal. Mesmo antes do retorno a Portugal, o rei e seus colaboradores próximos consideravam que os movimentos denominados liberais tinham pouca consistência teórica e prática, como era o caso da Revolução Pernambucana de 1817. Mesmo a revolução de 20 em Portugal revelava a inconsistência de intelectuais e políticos pouco conhecedores ou experimentados nas idéias liberais. Apesar da aliança com a Inglaterra, os portugueses não acompanhavam a evolução das idéias liberais no país aliado.
Pinheiro Ferreira convencera-se que não era possível virar as costas para os ideais modernos e esperava reformar as instituições, evitando o caminho das revoluções ou dos rompimentos bruscos com a tradição. Seu propósito era evitar as formas radicais assumidas pelo iluminismo francês que operou uma crítica radical ao cristianismo medieval optando por eliminá-lo ao invés de renová-lo e que em matéria de renovação política defendia a revolução. Pinheiro Ferreira deixou lições de aperfeiçoamento humano e social que constituem o ponto de partida da filosofia brasileira. O bem coletivo ou social foi pensado com base no utilitarismo de Bentham, mas a tese de Bentham, como a de Locke, mereceu adaptação. Não seria legítimo, explicou, em nome do bem do maior número, sacrificar os interesses de uma expressiva minoria. A questão dos interesses pede contínua negociação para não sacrificar a minoria, observa Esteves Pereira (1996):
“Os interesses deviam considerar o fato de que o maior bem do maior número (sem uma ponderação crítica) é um erro de transcendência (...), pois basta refletir que por esta definição, numa sociedade composta de duzentos sócios, noventa e nove serão sacrificados a cento e um” (p. 16).
O seu espírito conciliador e moderado se observa no documento que apresentou às Cortes em 4 de julho de 1821. Nele defende a soberania das Cortes, mas também a harmonia necessária entre elas e o rei. As leis votadas no parlamento precisavam do consentimento do monarca para entrar em vigor.
O aprofundamento destas idéias é tema do Manual do cidadão em um governo representativo, onde ele esclarece seu propósito de promover a transição de um governo historicamente absolutista para um sistema representativo. Acompanhando o liberalismo de então estabelece níveis de rendimentos econômicos para integrar o colégio eleitoral. Distingue os direitos do cidadão que nascem da lei, dos chamados direitos naturais, inerentes à sua condição humana.
A consciência dos problemas decorrentes da instabilidade política que vem da disputa pelo poder, mostra os motivos que o levaram a propor o Poder Moderador para assegurar o equilíbrio entre os poderes. Esse instituto seria capaz de mediar os elementos em conflito e harmonizar os poderes do Estado. A organização política que se desenvolve no segundo reinado tem um caráter próprio. Seus articuladores se afastam de algumas teses de Pinheiro Ferreira, mas elas foram referência para os liberais brasileiros que pensaram o Brasil independente.
O liberalismo católico de Diogo Antônio Feijó
Diogo Antônio Feijó nasceu na cidade de São Paulo em 3 de agosto de 1784 e ali morreu em 10 de novembro de 1843. Seguiu carreira eclesiástica e se ordenou em 25 de fevereiro de 1809. Sua obra fundamental foi publicada com o título de Cadernos de Filosofia e foi escrito entre 1818 e 1821.
O livro foi elaborado para servir de texto no curso que Feijó ministrou durante parte da vida que viveu em Itu. No livro Feijó iniciou suas reflexões repetindo as três perguntas consagradas por Kant: “que posso saber? (Crítica da Razão Pura), que devo fazer? (Crítica da Razão Prática) e que me é dado esperar? (Crítica do Juízo), o que revela conhecimento do kantismo” (Carvalho, 2000. p. 91). É também importante lembrar que Feijó se referia ao objeto da Metafísica como o fizera o filósofo alemão e não como propusera Antônio Genovesi (1713-1769). Para Feijó, Metafísica era a ciência de questões ligadas ao conhecimento humano (conteúdo, objeto e origem) e não uma teoria do ser.
Feijó desenvolve o seu conceito de filosofia como investigação sobre o entendimento humano, acompanhando Kant, mas não o segue quando estuda os problemas morais. A concepção de moral elaborada por Feijó revela que ele se aproximou do eudemonismo aristotélico-tomista e das teses de Genovesi, mantendo-se, no assunto, preso à influência do iluminismo lusitano. Como Kant entende a questão? Ele não queria uma vontade dirigida para fins outros que não a execução dos atos morais. Agir moralmente era, para ele, agir pelo dever. Quando uma ação não é comandada pela vontade de obedecer a lei, não é autônoma, logo não é moral. Quando se orienta para o cumprimento da lei a ação é moral e foi denominada de boa vontade. Portanto, moral é aquela escolha que orienta para o cumprimento da lei que comanda a ação.
Para Feijó, ao contrário do que pensou Kant, a filosofia moral é a ciência que trata dos deveres e meios de o homem alcançar a felicidade. Por natureza, o homem dispõe de um conjunto de forças que o levam à ação. Feijó distingue duas em constante disputa, o desejo de felicidade e amor, que orienta para os próprios interesses, e o dever, que obriga a agir nobremente. Em resumo, assim é a natureza moral do homem: desejo da felicidade, fundado no egoísmo e amor da justiça, sentimento nobre e desinteressado, sustentado na estima de si; tudo iluminado por uma razão que descobre os fins dessas propensões e pela capacidade de agir livremente. É devido à liberdade que o homem abraça ou rejeita os objetos indicados pelas propensões ou oferecidos por sua razão.
As nossas ações, explica o pensador, são guiadas por uma lei superior que resulta das relações que têm os entes entre si. Essa lei é que nos leva a reconhecer Deus como Criador e a nele confiar. Descobrimos, olhando a natureza, que tudo tem uma razão, uma finalidade. Os corpos funcionam com vistas à manutenção da vida e às faculdades humanas para promoverem a perfeição moral. Depois de tratar o comportamento moral de modo cuidadoso, Feijó elaborou uma espécie de guia moral.
Esta investigação, tema do 3° Caderno, aparece resumidamente em O retrato do homem de honra e verdadeiro sábio. Nesse texto, Feijó explicou que a verdadeira sabedoria e felicidade consistem em temer a Deus e obter a salvação.
Foram muitas as suas indicações para uma vida moral. Desde o comer e beber com moderação, fugir dos jogos de azar, trabalhar com parcimônia, descansar o tempo necessário para recobrar as forças e voltar ao trabalho, respeitar a natureza do corpo e do espírito e até evitar discussões inúteis e caprichosas. O sacerdote se empenhou em mostrar que o trabalho é importante, que as riquezas materiais não são detestáveis se são usadas com fins nobres, que a moderação nos usos e costumes é o que melhor convém ao homem, que todos devem ser previdentes e buscar bens que garantam uma velhice tranqüila. Esse guia, se seguido, é o retrato do sábio, segui-lo “é receita de felicidade” (idem, p. 172).
A fragilidade do guia moral consiste em sugerir que a valorização da existência humana e dos bens deste mundo podiam ser feitos sem contraditar os valores veiculados na moral católica de índole contra-reformista, voltados exclusiva e unilateralmente para a religiosidade do homem e pela profunda desconfiança do mundo. Estas idéias resumem o programa de vida sugerido pelo liberalismo católico de Feijó, completado pela prática política que desenvolveu como político que chegou a regente do Império.
Considerações finais
A compreensão da liberdade como algo fundamental ao homem está base do pensamento liberal defendido no Segundo Reinado. Eduardo Ferreira França entende que a liberdade individual devia ser defendida frente aos órgãos do Estado, pois este não o reconhece naturalmente. Para melhor resguardar a liberdade mostra que a Constituição liberal evita que todo o poder fique concentrado num único poder, acompanhando Pinheiro Ferreira para quem o legislativo e o Rei deviam agir de modo harmonioso. A discussão moral anteriormente mencionada e a sua vida política permitiram o médico Ferreira França rever suas posições naturalistas. Com a afirmação da liberdade pessoal, a aceitação de um programa moral capaz de justificar a vida terrena e o entendimento de que o Estado a devia respeitar os indivíduos, completa-se, em meados do século, a superação do entendimento que o homem é criatura desprezível, vil bicho da terra veiculada pela cristandade medieval. Ainda assim resquícios da mentalidade contra-reformista permaneceram e reapareceram em diferentes momentos da história do Brasil. O aprimoramento da representação é outro tema de Pinheiro Ferreira que se tornará uma preocupação dos políticos do Segundo Reinado.
Bibliografia
CAIRU, Visconde de. Observações sobre a prosperidade do Estado pelos liberais princípios da nova legislação do Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa Régia, 1816.
______. Constituição moral e deveres do cidadão. Rio de Janeiro: Nacional, 1824.
______. Ensaio econômico sobre ao influxo da inteligência humana na riqueza e prosperidade das nações. Rio de Janeiro: Revista Guanabara, 1851.
CAMPANTE, Rubens G. A economia e seu espírito. Caderno Pensar. Estado de Minas. 26/04/2008. p. 6.
CARVALHO, José Maurício de Carvalho. Caminhos da moral moderna. Belo Horizonte: Itatiaia, 1995.
______. Curso de introdução à filosofia brasileira. Londrina: EDUEL, 2000.
______. Contribuições contemporâneas à história da filosofia brasileira. 3. ed. Londrina: EDUEL, 2001.
PAIM, Antônio. Cairu e o liberalismo econômico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1968.
______. Evolução histórica do liberalismo. Belo Horizonte: Itatiaia, 1987.
______. História das idéias filosóficas no Brasil. 5. ed. Londrina: EDUEL, 1997.
______. O liberalismo contemporâneo. 3. ed. Londrina: Humanidades, 2007.
PEREIRA, José Esteves. Introdução às Obras Escolhidas de Silvestre Pinheiro Ferreira. Lisboa: Banco de Portugal, 1996.
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