terça-feira, 30 de setembro de 2008

Luís António Verney e o Iluminismo Francês

Amândio Coxito (Universidade de Coimbra)

O tema que me foi sugerido para sobre ele discorrer (As Reformas Pombalinas da Educação: Luís António Verney e o Iluminismo Francês) compreende, como é manifesto, duas partes. Irei ser breve em relação à primeira.
Verney partiu para Roma em 1736 certamente por causa da insatisfação nele provocada pelo ensino ministrado em Portugal e da consequente necessidade de procurar um lugar onde pudesse obter uma mais sólida formação intelectual no campo das novas ideias. Contudo, nalgumas das suas cartas ele refere ter isso sucedido em virtude de uma incumbência do rei D. João V com o objectivo de se informar em Itália sobre a melhor maneira de reformar os estudos no nosso País. Tal incumbência devemos, porém, considerá-la pouco provável, dada a falta de aptidões de Verney para realizar essa empresa, tendo em conta a sua pouca idade. De qualquer modo, o nosso pensador apresenta propostas de reforma do ensino no Verdadeiro Método de Estudar. Esta obra está organizada em dezasseis cartas, ocupando-se cada uma delas de um dos sectores dos estudos em voga na época. Todas as cartas estão constituídas por duas partes: a parte crítica à orientação pedagógica vigente e a parte de propostas de reforma em todos esses sectores. Relativamente a essas propostas, Verney principia pelos estudos elementares, prosseguindo pelas diversas disciplinas professadas a nível universitário. E o plano era o seguinte: gramática e ortografia da língua portuguesa; gramática latina; latinidade; grego e hebraico; retórica; poética; filosofia (incluindo a lógica, a metafísica, a física ou filosofia natural e a ética), medicina, jurisprudência, teologia e direito canónico.
Poderá perguntar-se se as propostas de Verney sensibilizaram o marquês de Pombal para a reforma dos estudos menores e universitários. Isso é admitido como provável por alguns estudiosos das reformas pombalinas, sobretudo pelo facto de o filósofo português propor a substituição dos compêndios usados pelos Jesuítas, que eram aqueles pelos quais eles leccionavam nas instituições de ensino que possuíam na Metrópole e no Ultramar, nomeadamente no Brasil, onde, na altura da expulsão, os inacianos dirigiam vários colégios, tal como sucedia noutras colónias. No entanto, com a reforma dos estudos menores apenas se substituíram os livros de texto até então adoptados pelos inacianos, permanecendo o plano que estava em vigor.
Tendo ou não influenciado as reformas pombalinas, o certo é que a obra de Verney teve uma eficácia no campo do ensino muito inferior àquela que o autor esperaria. Efectivamente, ao redigir a De re lógica, a De re metaphysica e a De re physica para uso dos jovens portugueses, Verney alimentava a esperança de que esses seus escritos viessem a ser usados como manuais nas escolas para o estudo da filosofia na sequência da orientação pedagógica do Verdadeiro Método. E o nosso filósofo lutou para eles serem adoptados no sistema de ensino em Portugal, mas as suas pretensões não foram coroadas de êxito. Contrariamente, com a reforma pombalina principiou a influência de António Genovesi, e foi mesmo decidida a publicação em latim da sua Lógica e da sua Metafísica na Imprensa da Universidade de Coimbra. O facto de terem sido votados ao desprezo os seus manuais no ensino explica, pelo menos em parte, que nos últimos anos de vida Verney dê a imagem de si próprio como a de lutador derrotado, ressentido e desiludido por se ter empenhado totalmente numa empresa que não conseguiu ver realizada.
De qualquer modo, as obras do autor português tiveram bastante divulgação nos sectores extra-escolares; e, como informa Gama Caeiro num artigo publicado na Revista da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, isso sucedeu também no Brasil, onde elas exerceram influência tanto directa como indirecta.
Mas, pondo de lado este assunto, vou aludir às relações de Verney com o Iluminismo francês.
O Iluminismo é um movimento cultural que pode considerar-se ter principiado com a “crise da consciência europeia” (segundo a expressão de Paul Hazard) no início da penúltima década do século XVII, embora houvesse já antecedentes, tanto próximos como remotos. Esse movimento reflectiu-se também em Portugal, ainda que de uma maneira relativamente modesta. Mas não vou referir-me ao Iluminismo em geral, propondo-me apenas discorrer sobre Verney nas suas relações com o Iluminismo francês. Relativamente a este tema, deve esclarecer-se que os maiores expoentes da Filosofia das Luzes em França não tiveram repercussão no nosso filósofo, tanto quanto permite concluir o estado actual das investigações. Houve, porém, um representante de bastante renome desse Iluminismo que deixou marcas assinaláveis no pensador português. Refiro-me ao jesuíta Claude Buffier, que também exerceu influência em vários outros autores, nomeadamente em Voltaire, nos compiladores da Encyclopédie, em Thomas Reid, talvez em Rousseau e em Condillac e ainda nalguns filósofos escolásticos posteriores.
Buffier foi influenciado por várias correntes filosóficas modernas, em especial pelo cartesianismo e pelo empirismo de Locke, tendo elaborado na sua obra mais importante, Traité des premières vérités, uma doutrina do conhecimento na qual se propõe examinar as proposições que podem demonstrar-se para ascender a partir delas às que não são susceptíveis de demonstração, constituindo, porém, a base de todas as ciências e de todo o juízo correcto. A estas denomina-as o pensador francês “primeiras verdades”. Igualmente, Verney analisa o tema das primeiras verdades (uma questão recorrente no século XVIII), a propósito das verdades do senso comum. Esse tema é examinado no livro terceiro da De re metaphysica, onde o nosso autor declara que a parte principal da metafísica tem como finalidade investigar e expor as proposições gerais ou as primeiras verdades respeitantes a todas as disciplinas, além de fornecer a significação dos nomes de que se servem as ciências e de prescrever as regras para o seu uso correcto. Porém, a metafísica não se circunscreve à linguagem da ciência: ela também examina certas proposições ou juízos unanimemente aceites por todas as pessoas e que são necessários para a condução da nossa vida, constituindo um caso particular de primeiras verdades. É a respeito deste assunto que Verney se inspira directamente em Claude Buffier.
À semelhança de Buffier, o filósofo português define “primeiras verdades” como “certas proposições tão evidentes que não podem ser demonstradas nem refutadas por outras dotadas de maior clareza”. Dito de outro modo, trata-se de juízos gnosiologicamente anteriores a quaisquer outros, cuja verdade é garantida pelo facto de procederem da actividade natural e imediata do espírito. E tais juízos são o fundamento de certas crenças humanas.
Como corolário daquela definição, Verney refere algumas notas distintivas dessas verdades: que sejam de tal modo evidentes que não possam ocorrer outras com maior evidência ou dotadas de maior certeza, das quais elas pudessem deduzir-se; que sejam admitidas por todas as pessoas com tal consenso e convicção que ninguém ou quase ninguém as impugne, uma vez adquirida a razão da espécie humana; que estejam impressas tão profundamente no nosso espírito que não possam ser invalidadas por nenhumas falácias ou por meios astuciosos dos oponentes; além disso, que todos ordenem a sua vida pelas suas prescrições.
São mencionadas por Verney duas fontes das primeiras verdades: o sentido íntimo ou a consciência, e os sentidos com a cooperação da recta razão. Por isso, ele distingue as verdades internas e as verdades externas. Mas para melhor discriminar estas duas espécies de verdades, poderíamos acrescentar (como faz Buffier) que as primeiras consistem na conformidade entre as ideias, enquanto a natureza das segundas reside na conformidade de um complexo de ideias com os objectos exteriores que são representados.
Contudo, de modo análogo ao que se verifica no seu antecessor, o filósofo português dedica-se em especial à análise das verdades externas, que dizem respeito a coisas ou a factos exteriores ao espírito, havendo por isso maior interesse em serem justificadas. Diferentemente, ambos os autores se preocupam muito pouco em fundamentar o valor das verdades internas ou do sentido íntimo, dado não terem opositores dignos de crédito. Por exemplo, o conhecimento da própria existência e da existência dos factos mentais (pensamentos, volições, etc.) não é susceptível de ser posto em dúvida, visto possuir a máxima evidência para todos, sendo, por conseguinte, condição necessária de qualquer outra verdade e de toda a ciência humana. Pode, assim, dizer-se que as verdades internas estão dotadas de uma evidência matemática idêntica à das demonstrações logicamente correctas, motivo por que nem sequer os cépticos as recusam. Está aqui a razão da sobriedade com que Buffier e Verney tratam o tema desta espécie de verdades, dedicando-se sobretudo à análise das verdades externas, que são aquelas que os cépticos não aceitam.
Como eu tinha referido, as primeiras verdades em que há intervenção dos sentidos têm para Verney a garantia da razão. Esta faculdade, enquanto cooperante com os sentidos, é denominada “senso comum” e “voz da natureza”, sendo, portanto, uma disposição natural, como também a havia considerado Buffier. E quando o jesuíta francês escreve que o senso comum é uma disposição natural, pretende significar que se trata de uma tendência estável para pensar que algumas proposições são auto-evidentes ou evidentes por si mesmas. E ele também acentua (como na sua peugada Verney) que essa tendência existe em todos os homens, ou pelo menos na maior parte, “que é manifestamente a mais extensa e a mais numerosa”. Mas ─ podemos perguntar ─ como se justifica que o senso comum é uma disposição natural presente em todos os homens para ajuizar com evidência? Com efeito, aceitando a universalidade do senso comum, corre-se o risco de tomar como norma da verdade a opinião da maioria, não atendendo aos juízos da minoria, designadamente aos juízos dos filósofos e dos especialistas, preferindo o parecer da multidão ao dos espíritos selectos e cultivados.
Para solucionar esta dificuldade, Verney reconhece poder suceder que o senso comum seja em certos casos apanágio de determinadas pessoas se estiverem em condições de ajuizar melhor que as outras sobre assuntos de que têm maior experiência. Por tal motivo, a universalidade do senso comum apresenta-se por vezes drasticamente restringida, manifestando-se essa disposição natural como uma prerrogativa da minoria e em muitos casos apenas dos especialistas. Declara a propósito o filósofo português: “Se em matérias de que tenho conhecimento e experiência verificar que outras pessoas não exercitadas como eu ajuízam de forma diferente da minha, posso legitimamente pensar que elas cometem erro. Se, porém ─ prossegue Verney ─, a maioria delas for versada em determinados assuntos e emitir juízos diferentes dos meus, estamos perante um indício claro e certo de que eu erro, dado não ser possível enganarem-se tantas pessoas com aptidão para ajuizar e apenas eu acertar no alvo”.
Se o senso comum é uma disposição natural, ainda que não implique necessariamente universalidade de facto, quem não for infiel à razão é impossível que não dê assentimento às verdades comuns que a natureza depositou no espírito de todos os homens. Quando isso não suceder a respeito de alguma verdade, devido a qualquer preconceito, os responsáveis devem ser considerados extravagantes. E, se alguém persistir de um modo sistemático numa atitude de rebeldia perante todas as verdades do senso comum, é manifestamente louco. De facto, a extravagância e a loucura são o oposto da razão. Como escreve Buffier, encontramos com frequência pessoas deste género, mesmo entre as dotadas de qualidades eminentes, “pelo que a experiência nos mostra todos os dias um grande louco que é um espírito bem formado, um grande louco que é um homem muito sábio e até a maior parte das vezes um grande louco que é o melhor homem do mundo”.
Mas como explicar que nem todas as pessoas se deixem guiar pelo senso comum? Embora a natureza seja regular nas suas obras, encontramos nela defeitos e imperfeições e até monstruosidades. Disto são em grande parte responsáveis os próprios homens pelo mau uso que fazem da liberdade, o que induz alguns deles a emitir falsos juízos sobre as coisas, constituindo por isso uma excepção relativamente à universalidade do senso comum. Entre as causas do mau uso da liberdade, Verney salienta: a vanglória, que nos induz a pensar e a exprimir-nos de modo diferente dos outros para aparentarmos que somos mais talentosos que eles; a curiosidade exagerada, que nos incita a emitir juízos sobre assuntos que não podem ser investigados pela razão humana; os preconceitos de partido, que ocasionam que permaneçamos obstinadamente vinculados a uma escola, tal como acontece com os pirrónicos e os académicos, que por esse motivo difundiram a dúvida universal; a negligência e a ligeireza em ajuizar, dado que muitas vezes, em virtude de não examinarmos com rectidão um princípio que é o fundamento do sistema, incorremos em erro ao não considerarmos a sequência das proposições evidentes que se inferem desse princípio; a presunção arrogante, que nos coage a depreciar o senso comum por ele manifestar com clareza certas verdades que nos incomodam. Poderíamos então dizer que, se a natureza concedeu o senso comum a todos os homens, nem todos o reconhecem, pelo menos a respeito de certos assuntos relativamente aos quais alguns deles, ao emitirem juízos, se apartam das prescrições “que Deus incutiu no nosso espírito para que todas as pessoas pudessem ajuizar da mesma forma sobre coisas evidentes”.
O filósofo português apresenta nove exemplos de verdades evidentes do senso comum em relação às quais todos estão em condições de ajuizar, acrescentando, porém, não se tratar de uma lista definitiva: tenho uma determinada cor e uma determinada estatura; sou um único homem e não dois; estou dotado de um corpo e de uma inteligência; sou livre, isto é, posso fazer o que desejar sem uma causa que me coaja intimamente; além de mim, existem na Terra outras pessoas; não me criei a mim próprio; não apenas eu, mas também os outros homens, possuímos um corpo e um espírito; tudo o que é realizado com sumo artifício é realizado por uma causa provida de razão; se um grande número de pessoas de são juízo e de crédito incontestável atestar algo não por ouvir dizer, mas em virtude do próprio conhecimento, isso deve considerar-se verdadeiro e confirmado.
Estas verdades não procedem de quaisquer outras, sendo, por isso, conhecidas com absoluta certeza, à semelhança das do sentido íntimo, diferindo apenas destas no modo como a evidência se impõe.
Quanto à lista referida de primeiros princípios do senso comum, Verney destaca o da existência dos corpos exteriores, manifestada pelo exercício dos sentidos e pela “recta ratio”, apresentando exemplos sobre os dados de cada um deles e mencionando casos em que apenas devido a alterações patológicas dos respectivos órgãos não é possível apreender certas qualidades correspondentes.
Os dados dos sentidos possibilitam também conhecer com certeza uma outra verdade do senso comum: a da liberdade humana. O sentimento da liberdade está difundido em todos os espíritos, e todas as pessoas procedem em conformidade com ele. Pela sua parte, declara Buffier que tudo o que possa objectar-se ao juízo do senso comum de que o homem é livre não pode ser expresso por um princípio mais claro e mais imediato que o princípio da liberdade.
Entre as verdades do senso comum possibilitadas pelo exercício dos sentidos, encontra-se ainda a que diz respeito ao testemunho alheio. Efectivamente ─ escreve Verney ─, “o testemunho continuado das pessoas é um sinal, ou um indício, ou um critério da verdade”. Para que esse testemunho seja evidente, exigem-se três condições: que seja relativo a coisas existentes (às “res facti”); que a maioria das pessoas que conhece o assunto possua sobre ele uma opinião idêntica, pois, se elas concordarem entre si, só um insensato ousaria desmenti-las; que não exista nenhuma razão para pensar que quem testemunha é movido pelo ódio, pela paixão, pelo temor ou que por qualquer motivo tem o intento de mentir. A segunda destas condições parece, estranhamente, defender uma teoria segundo a qual não é a correspondência dos juízos com o real que constitui a verdade, mas a coerência dos juízos, pois seria suficiente um grande número de testemunhos que fossem compatíveis entre si para eles serem verdadeiros.
No confronto que venho realizando entre Verney e Buffier, devo salientar que o filósofo português declara serem verdades do senso comum certas proposições em relação às quais o seu antecessor tem um parecer diferente. Considera o nosso autor que a evidência física da existência das coisas materiais é o fundamento das próprias verdades da matemática, propugnando, assim, uma explicação empirista das operações e das leis dessa disciplina. Deste modo, examinando certas demonstrações referentes a números ou a linhas, elas pressupõem em último caso, segundo o filósofo português, a evidência dos sentidos, designadamente na geometria, pois, ao demonstrar-se, por exemplo, que a linha A e o ângulo B são, respectivamente, metades da linha B e dos ângulos A e C de um triângulo, é necessário o sentido da visão. E, admitindo a opinião de alguns autores de que os cegos de nascença são capazes de apreender certas demonstrações matemáticas servindo-se de figuras gravadas ou em relevo, tal apreensão só é possível através do sentido do tacto. Depreende-se, pois, que Verney professa em relação à matemática um realismo ingénuo, considerando ser apenas real e válido o que é de natureza sensível, negando implicitamente a natureza ideal ou inteligível dessa disciplina.
O nosso pensador interroga-se ainda se outros tipos de proposições se encontram em idêntica condição. Ele examina em especial aquilo que denomina “axiomas metafísicos”, tais como: “dois e dois são quatro”, “o todo é maior que a parte”, “é impossível que uma coisa seja e não seja ao mesmo tempo”. Estão, portanto, incluídos os princípio lógicos. Sobre este assunto, Buffier tinha considerado que os referidos axiomas são apenas verdades internas ou associações de ideias, revelando, por isso, neste ponto um acordo com o racionalismo. Mas, opondo-se expressamente a esta doutrina, Verney, manifestando de novo uma atitude de empirismo radical, é de opinião que os mencionados axiomas estão em conformidade com objectos exteriores de modo análogo a todas as verdades externas. Com efeito, escreve ele textualmente: “Não possuímos a ideia do todo e da parte, de 'maior' e de 'menor', de 'dois' e de 'quatro' a não ser por meio dos sentidos”, pelo que a verdade de tais axiomas está nas mesmas condições que a verdade da proposição “existem outros homens além de mim”. Estamos, portanto, em ambos os casos perante verdades do senso comum.
Se as verdades do senso comum ou as verdades externas são as únicas que permitem afirmar a existência das coisas, isso significa que o sentido íntimo não proporciona um critério de verdade objectiva com a admissão de um mundo corpóreo independente do pensar. Compreende-se deste modo que o intento de Buffier e de Verney com a sua doutrina seja superar o solipsismo de certos autores da época para quem o que é testemunhado pela consciência é a única fonte de verdade e de certeza, não se justificando, por isso, admitir que existem objectos exteriores ao espírito.
Entre os defensores do solipsismo, Buffier refere “um filósofo inglês” (aparentemente Berkeley), enquanto Verney faz alusão a Malebranche, a Pierre Bayle e igualmente a Berkeley, considerando-os como pensadores que rejeitam a existência dos corpos.
Mas vou restringir-me a Verney e, antes de mais, a propósito da sua crítica de Malebranche. Há um passo na obra De la recherche de la vérité em que Malebranche põe a si próprio esta pergunta: se os sentidos nos induzem em erro sobre a existência real das qualidades secundárias (a cor, o sabor, etc.), porque não há-de suceder o mesmo acerca da existência das qualidades primárias (a grandeza, a figura, o movimento)? Este filósofo põe, portanto, em dúvida que, com base na especulação filosófica, possamos afirmar a existência dos corpos.
A conclusão lógica do passo de Malebranche é a reclusão num rigoroso fenomenismo subjectivo ou na afirmação de que, se há coisas em si, elas não podem conhecer-se. Não obstante, o autor francês liberta-se desse estado filosoficamente incómodo socorrendo-se da porta teológica, como era peculiar na época entre os cartesianos. Se afirmamos que existem os corpos exteriores, é porque Deus nos incute o sentimento dessa existência, e, sendo ele infinitamente perfeito, não pode enganar-nos.
O raciocínio do padre do Oratório é criticado por Verney invocando o pensamento de Locke: as qualidades secundárias dos corpos são apenas potências para suscitarem em nós várias sensações e as correspondentes ideias por meio das qualidades primárias. Diversamente, as qualidades primárias são inseparáveis dos corpos, sejam ou não percepcionadas pelos sentidos, motivo por que são objectivas, ou seja, dão-se a conhecer nos objectos da experiência.
Uma parte importante da crítica de Verney ao solipsismo ou à concepção céptica sobre a existência dos corpos tem na base um artigo do Dictionnaire historique et critique de Pierre Bayle. Bayle é um pensador que representa em França um elo essencial na cadeia de ligação entre o século XVII da revolução científica e o século XVIII iluminista do enciclopedismo. Mas, embora o filósofo francês combata na referida obra a intolerância e o obscurantismo, ele revela, por outro lado, um cepticismo pirrónico e uma rejeição do optimismo deísta. No mencionado artigo, Bayle proclama que os argumentos cépticos que levam os filósofos a recusar a realidade das qualidades secundárias são também conclusivos a respeito da rejeição da realidade das qualidades primárias, nomeadamente da extensão corpórea. Vejamos um pequeno passo desse artigo: “Há dois axiomas filosóficos que nos ensinam: um, que a natureza nada faz inutilmente; outro, que se faz inutilmente com o recurso a muitos meios o que pode fazer-se com a mesma comodidade através de poucos. Tendo em conta estes dois axiomas, os cartesianos (…) podem sustentar que não existem corpos, pois, quer eles existam ou não, Deus pode comunicar-nos igualmente todos os pensamentos que possuímos”. E, resumindo a restante parte do texto: afirmar que os sentidos nos certificam dessa existência não demonstra que os corpos existam, pois os sentidos induzem-nos em erro a respeito das qualidades secundárias, não havendo motivo para confiarmos neles relativamente à existência da extensão, da grandeza e do movimento, que podem, por isso, reduzir-se a simples aparências. Estes axiomas de Bayle apresentam, portanto, a base de um cepticismo que recusa não só a realidade das qualidades secundárias, mas também a realidade dos objectos enquanto dotados de qualidades primárias. Deste modo, todas as qualidades, primárias ou secundárias, são reduzidas a aparências ou a modificações do espírito, não havendo nenhuma evidência racional da existência de uma realidade independente do pensar.
Impugnando os dois axiomas referidos, Verney declara que o que é mais cómodo (a “via mais breve”) é aceitar ter Deus criado os nossos sentidos com tanta perfeição que eles visam necessariamente uma finalidade (pois Deus nada faz inutilmente), sendo essa finalidade, como a experiência comprova, adquirir as ideias possibilitadas pela percepção dos corpos exteriores. Ora, isto só pode suceder se os corpos existirem efectivamente.
Segundo a interpretação de Popkin, Bayle levou o cepticismo às suas últimas consequências. Não se trata, porém, do cepticismo elegante e aristocrático de Montaigne e de Charron, mas de um cepticismo radical de quem acredita não poder confiar-se não apenas nos sentidos, mas nem sequer na razão. Esta atitude céptica ou pirronismo extremo propunha-se abalar a confiança na razão para pôr em realce a verdade da fé cristã. Contrariamente, Verney assevera como sendo evidente a existência dos corpos: assim o confirmam os dados dos sentidos com a cooperação da “recta ratio”, possibilitando a todas as pessoas ajuizar com rectidão sobre essa existência.
Por último, tal como nos dois casos anteriores, também a incriminação da filosofia de Berkeley se fundamenta no facto de ela rejeitar a existência independente dos corpos contra o juízo do senso comum. Contudo, o parecer do nosso filósofo é fruto da incompreensão e da distorção no século XVIII do pensamento do autor irlandês, o que aliás não é de estranhar se pensarmos nas violentas e descontroladas reacções ocasionadas pelas teorias do bispo de Cloyne, as quais ainda se faziam sentir quando Verney escreveu. Aquela crítica é de início comedida, porque baseada em argumentos filosóficos, mas progressivamente e sobretudo na última parte torna-se contundente e sarcástica, tornando manifesta a obsessão do pensador português em identificar o imaterialismo berkleyano com o pirronismo mais ridículo. Vejamos um passo dessa crítica: “Expondo com sinceridade o meu pensamento, julgo só ser possível refutar Berkeley e outros disputadores do mesmo género torturando-os à fome e à sede durante três dias fechados num cubículo. Em tal situação, quando eles implorassem com persistência comida e água, seriam absurdas e insultuosas as suas súplicas se lhes mostrássemos as suas demonstrações. Na verdade, as suas mentes espirituais não se sustentam com comida nem com bebida, pois, se eles não têm um corpo, não necessitam de alimentos corpóreos. E, se eles objectassem que, se lhes déssemos de comer e de beber, isso suscitaria nos seus espíritos aquela sensação deliciosa de voluptuosidade que com veemência estavam desejando, poderíamos responder-lhes muito candidamente não existirem comida nem bebida nem nenhuma pessoa exterior às suas mentes que pudesse vir socorrê-los; e responder-lhes ainda ser-lhes suficiente a lembrança da comida e da bebida para incutir nos seus espíritos as ideias que lhes causam tanta satisfação. Assim ─ e disso tenho eu a certeza ─, pelo tormento físico refutá-los íamos com maior facilidade do que se recorrêssemos a muitos argumentos”.
Concluindo, o senso comum é uma disposição natural para ajuizar que certos princípios são verdades auto-evidentes. Estes princípios são primariamente relativos à existência de outros seres distintos de nós próprios, bem como à existência das suas propriedades mais importantes, cujo conhecimento é necessário para a condução da nossa vida animal, intelectual e moral. E eles têm uma função particularmente relevante nas doutrinas de Buffier e de Verney. No entanto, também o sentido íntimo é uma disposição natural e uma fonte genuína de verdade e de certeza, induzindo igualmente de um modo necessário a assentir, dada a superior clareza dos respectivos princípios, imunes a qualquer argumento adverso. E em ambos os casos existem verdades cujo conteúdo não pode ser deduzido de outras proposições.
Mas o sentido íntimo, tendo, embora, relações necessárias com o senso comum, pareceu a muitos poder garantir por si só os princípios do conhecimento evidente. Isso conduziu ao solipsismo, que é o resultado da redução ilegítima das verdades que o homem pode conhecer às verdades da consciência. Por esse motivo, aqueles dois pensadores reagiram contra o cepticismo que julgaram estar implícito na atitude solipsista, propondo o senso comum como o modelo em relação ao qual se podem evidenciar a insustentabilidade e o absurdo de certos sistemas filosóficos.
Considerando a estrutura geral dos seus argumentos, as doutrinas de Buffier e de Verney são basicamente idênticas quanto a soluções essenciais, ainda que difiram em certos aspectos particulares, nomeadamente porque o filósofo português manifesta uma postura de empirismo radical na concepção de que certas proposições da matemática e os princípios lógicos são verdades do senso comum, contrariamente ao que pensa Buffier.
Escreve Étienne Gilson que o senso comum é concebido pelos sequazes da respectiva filosofia (designadamente por Buffier e por Reid) como “uma espécie de sentido do verdadeiro, ao mesmo tempo infalível e injustificável”, e que esses sequazes pretenderam “fazer repousar todo o edifício do conhecimento verdadeiro sobre juízos instintivos e, portanto, irracionais”. Outros críticos da referida doutrina sustentam que ela não atende suficientemente ao fundamento objectivo dos princípios do senso comum, argumentando que se lhes dá assentimento em virtude da nossa constituição subjectiva; diversamente, para o aristotelismo escolástico esses princípios procedem do vínculo entre subjectividade e objectividade.

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Para terminar a exposição deste tema, vou fazer algumas considerações muito sucintas. Refiro primeiramente que Verney teve conhecimento de outros autores iluministas franceses de menor categoria, fazendo alusão às suas obras, tanto na Lógica como sobretudo na Metafísica. E não apenas de iluministas franceses, mas também ingleses, alemães, dos Países-Baixos e italianos. Ele conheceu essas obras ou por estarem redigidas em latim ou por estarem traduzidas. (Devo esclarecer que o nosso pensador desconhecia o inglês e o alemão).
Em segundo lugar, talvez viesse a propósito referir-me mais expressamente à influência de Locke sobre Verney, tanto mais que ele foi o seu principal mentor no campo da filosofia. Por outro lado, Locke teve enorme influência no Iluminismo francês, e terá sido provavelmente através da tradução francesa do Ensaio sobre o Entendimento Humano realizada por Coste que Verney tomou conhecimento da doutrina do filósofo inglês, ainda que isso pudesse também ter sucedido através da tradução latina de Burridge.
Em terceiro lugar, não seria totalmente descabida uma alusão ao modo como Verney reagiu perante o racionalismo cartesiano, até porque esta tendência foi um dos antecedentes mediatos do Iluminismo.
Contudo, referir-me a estes assuntos iria ampliar excessivamente a minha exposição. Poderá haver oportunidade para falar sobre eles na discussão que eventualmente se seguir.

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