José Oscar de Almeida Marques (UNICAMP)
com Apêndice "Instinto versus Liberdade no Estado de Natureza", de Renato Moscateli
Notas ao fim do texto
Notas ao fim do texto
Enquanto um dos grandes teóricos da política, o inglês Thomas Hobbes, escolheu a segurança do indivíduo como base para a construção de seu sistema, o genebrino Jean-Jacques Rousseau deu o mesmo papel à preservação da liberdade. Ao apoiar-se na universalidade do medo da morte violenta como paixão dominante entre os seres humanos, Hobbes articulou um sistema em que é racional, para cada sujeito, alienar uma parte da liberdade de que originalmente dispunha no estado de natureza em troca da garantia de sua segurança. Tal permuta, entretanto, é inaceitável para Rousseau, para quem a alienação da liberdade priva o homem do que lhe é mais essencial e constitutivo, a ponto de o que resta não valer a pena ser defendido.
Diferenças peculiares entre seus sistemas justificam que um e outro autor tenham adotado fundamentos tão distintos para seus sistemas. Dentre elas, possivelmente a mais importante é a maneira de conceber o chamado “estado de natureza”, que, na famosa formulação de Hobbes, é um estado de “guerra de cada homem contra cada homem”[1], ao passo que, para Rousseau, constitui uma situação de relativa tranqüilidade, em que os seres humanos satisfazem com pouco esforço suas necessidades e têm poucas interações com seus semelhantes, tornando a busca da segurança um motivo menos premente do que em Hobbes.
Por suas diferenças reais ou supostas na forma de conceber o homem e a política, há muito os dois autores adquiriram, na cultura universitária e midiática, o caráter de dois pólos opostos e irreconciliáveis. A imagem aterradora do homo homini lupus contrasta com a figura gentil do bon sauvage, e nessas imagens encarnam-se as visões pessimista e otimista do ser humano em vista de sua possível sociabilidade. A partir dessas caracterizações, as simpatias e antipatias do público irão distribuir-se entre eles conforme aquele que julgue seja, ele próprio, adepto de uma visão otimista ou pessimista (ou, como se preferirá dizer: realista) da natureza do ser humano.[2]
Quando se abandona, entretanto, o terreno das análises superficiais e descompromissadas da divulgação cultural e se observa com atenção o que dizem de fato os autores, é surpreendente quão rápido se desfaz essa popular distinção. Não apenas se revela que Hobbes e Rousseau compartilham diversos pontos essenciais em seus sistemas, mas até mesmo seus papéis dramáticos se invertem, e é comum encontrar análises de comentadores que colocam Hobbes entre os precursores do liberalismo político, ao passo que Rousseau é freqüentemente acusado de ser um inimigo da liberdade individual, e incluído entre os defensores do “totalitarismo”. [3]
Menciono de passagem estes pontos, que por si sós poderiam ser o assunto de uma instigante exposição, apenas para circunscrever um problema, ou até mesmo, se se quiser, um paradoxo na maneira como Rousseau concebe a liberdade. Se recordarmos o que se disse acima acerca do papel central da liberdade no pensamento político de Rousseau, parece muito estranho e desconfortável que se tenha podido acusar esse autor de ser um inimigo dos próprios valores que tão claramente professou defender. Pretendo a seguir examinar as peculiares dificuldades da noção rousseauniana de liberdade e encaminhar aquilo que me parece ser uma solução para o paradoxo.
Por suas diferenças reais ou supostas na forma de conceber o homem e a política, há muito os dois autores adquiriram, na cultura universitária e midiática, o caráter de dois pólos opostos e irreconciliáveis. A imagem aterradora do homo homini lupus contrasta com a figura gentil do bon sauvage, e nessas imagens encarnam-se as visões pessimista e otimista do ser humano em vista de sua possível sociabilidade. A partir dessas caracterizações, as simpatias e antipatias do público irão distribuir-se entre eles conforme aquele que julgue seja, ele próprio, adepto de uma visão otimista ou pessimista (ou, como se preferirá dizer: realista) da natureza do ser humano.[2]
Quando se abandona, entretanto, o terreno das análises superficiais e descompromissadas da divulgação cultural e se observa com atenção o que dizem de fato os autores, é surpreendente quão rápido se desfaz essa popular distinção. Não apenas se revela que Hobbes e Rousseau compartilham diversos pontos essenciais em seus sistemas, mas até mesmo seus papéis dramáticos se invertem, e é comum encontrar análises de comentadores que colocam Hobbes entre os precursores do liberalismo político, ao passo que Rousseau é freqüentemente acusado de ser um inimigo da liberdade individual, e incluído entre os defensores do “totalitarismo”. [3]
Menciono de passagem estes pontos, que por si sós poderiam ser o assunto de uma instigante exposição, apenas para circunscrever um problema, ou até mesmo, se se quiser, um paradoxo na maneira como Rousseau concebe a liberdade. Se recordarmos o que se disse acima acerca do papel central da liberdade no pensamento político de Rousseau, parece muito estranho e desconfortável que se tenha podido acusar esse autor de ser um inimigo dos próprios valores que tão claramente professou defender. Pretendo a seguir examinar as peculiares dificuldades da noção rousseauniana de liberdade e encaminhar aquilo que me parece ser uma solução para o paradoxo.
1. Forçar-nos a ser livres?
Que há alguma coisa problemática na maneira pela qual Rousseau pensa a liberdade no contexto da política já deveria ficar claro pela leitura do primeiro parágrafo d' O contrato social. Todos conhecem a retumbante abertura: “O homem nasce livre e por toda parte está a ferros”. Mas só os leitores atentos percebem as implicações das frases que se seguem: "Aquele que se crê senhor dos outros não deixa de ser mais escravo do que eles. Como ocorreu essa mudança? Ignoro-o. O que pode torná-la legítima? Creio poder resolver essa questão." [4]
Note-se, inicialmente, que, para Rousseau, não há oprimidos que estão a ferros e opressores que os mantêm sob sujeição, como agrada pensar às mentalidades revolucionárias, mas, nas sociedades existentes, todos estão igualmente na situação de escravos. Esta é uma primeira observação, mas não vou desenvolvê-la aqui. Mais importante é a segunda: em vez de heroicamente prosseguir com um chamado a romper essas cadeias e restaurar a liberdade original, Rousseau irá mostrar como essa situação pode ser tornada legítima, ou seja, como a condição universal de sujeição pode ser justificada! Essa surpreendente proposição, engenhosamente colocada na abertura da obra, atua como um desafio e um estímulo a nossa compreensão, e para começar a desvendá-la é preciso examinar qual a tarefa que Rousseau pretendeu cumprir com seu livro.
Convenientemente, Rousseau oferece, no capítulo VI d' O contrato social, uma indicação desse objetivo. Trata-se, em sua palavras, de “Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja com toda força comum a pessoa e os bens de cada associado[5], e pela qual cada um, unindo-se a todos, não obedeça, entretanto, senão a si mesmo e permaneça tão livre como antes.” Esse é o problema fundamental, ao qual O contrato social dá a solução. [6]
Isto, porém, ainda não esclarece o problema, antes parece torná-lo mais difícil, pois como entender que os homens estejam presos a vínculos que os obrigam em relação aos associados e, ainda assim, permaneçam “tão livres como antes”? A solução, como se sabe, está na peculiar noção de “vontade geral” tal como Rousseau a emprega em sua teoria política. Não é o caso de nos determos aqui sobre as imensas dificuldades associadas a essa noção; note-se apenas que, ao aceitar os vínculos que me obrigam frente à vontade geral, eu não estaria me submetendo a uma dominação alheia e externa, mas, dado que a vontade geral é a minha vontade, ou o que há de geral na minha vontade, eu continuaria obedecendo apenas à minha vontade e, por isso, permaneceria tão livre como era no estado pré-social.
Mas Rousseau não se dá por satisfeito e acirra ainda mais o paradoxo algumas páginas adiante com a célebre passagem que determina a coerção, pela força pública, daquele que se recusar a obedecer à vontade geral, explicando que isso não é nada mais que “forçá-lo a ser livre”. Compreensivelmente tal formulação tem provocado a perplexidade, e mesmo a hostilidade, de comentadores, que enxergam aí um sinal de que Rousseau endossa a submissão incondicional do indivíduo ao corpo coletivo. Pela sua importância, consideremos a passagem in extenso:
Note-se, inicialmente, que, para Rousseau, não há oprimidos que estão a ferros e opressores que os mantêm sob sujeição, como agrada pensar às mentalidades revolucionárias, mas, nas sociedades existentes, todos estão igualmente na situação de escravos. Esta é uma primeira observação, mas não vou desenvolvê-la aqui. Mais importante é a segunda: em vez de heroicamente prosseguir com um chamado a romper essas cadeias e restaurar a liberdade original, Rousseau irá mostrar como essa situação pode ser tornada legítima, ou seja, como a condição universal de sujeição pode ser justificada! Essa surpreendente proposição, engenhosamente colocada na abertura da obra, atua como um desafio e um estímulo a nossa compreensão, e para começar a desvendá-la é preciso examinar qual a tarefa que Rousseau pretendeu cumprir com seu livro.
Convenientemente, Rousseau oferece, no capítulo VI d' O contrato social, uma indicação desse objetivo. Trata-se, em sua palavras, de “Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja com toda força comum a pessoa e os bens de cada associado[5], e pela qual cada um, unindo-se a todos, não obedeça, entretanto, senão a si mesmo e permaneça tão livre como antes.” Esse é o problema fundamental, ao qual O contrato social dá a solução. [6]
Isto, porém, ainda não esclarece o problema, antes parece torná-lo mais difícil, pois como entender que os homens estejam presos a vínculos que os obrigam em relação aos associados e, ainda assim, permaneçam “tão livres como antes”? A solução, como se sabe, está na peculiar noção de “vontade geral” tal como Rousseau a emprega em sua teoria política. Não é o caso de nos determos aqui sobre as imensas dificuldades associadas a essa noção; note-se apenas que, ao aceitar os vínculos que me obrigam frente à vontade geral, eu não estaria me submetendo a uma dominação alheia e externa, mas, dado que a vontade geral é a minha vontade, ou o que há de geral na minha vontade, eu continuaria obedecendo apenas à minha vontade e, por isso, permaneceria tão livre como era no estado pré-social.
Mas Rousseau não se dá por satisfeito e acirra ainda mais o paradoxo algumas páginas adiante com a célebre passagem que determina a coerção, pela força pública, daquele que se recusar a obedecer à vontade geral, explicando que isso não é nada mais que “forçá-lo a ser livre”. Compreensivelmente tal formulação tem provocado a perplexidade, e mesmo a hostilidade, de comentadores, que enxergam aí um sinal de que Rousseau endossa a submissão incondicional do indivíduo ao corpo coletivo. Pela sua importância, consideremos a passagem in extenso:
"Para que o pacto social, portanto, não seja uma fórmula vã, ele encerra tacitamente esse compromisso que, apenas ele, pode dar força aos outros, a saber, que quem quer que se recuse a obedecer à vontade geral será obrigado a isso por todo o corpo; o que significa apenas que será forçado a ser livre (ce qui ne signifie autre chose sinon qu’on le forcera d’être libre); pois essa é a condição que, dando cada cidadão à pátria o garante contra toda dependência pessoal; condição que produz o engenho e o funcionamento da máquina política e que é a única capaz de tornar legítimos os compromissos civis, os quais, sem ela, seriam absurdos, tirânicos e sujeitos aos maiores abusos. "[7]
Ninguém negaria, é verdade, que a vida em sociedade exige restrições da liberdade de cada indivíduo, para torná-la compatível com a liberdade dos demais. O que surpreende na afirmação de Rousseau não é que coerções devam ser impostas, mas que sejam elas, essencialmente, que tornam o homem livre, como Rousseau afirma ao final da passagem citada.
Antes de iniciar a discussão, parece-me oportuno mencionar uma passagem do livro de Salinas Fortes, Paradoxo do espetáculo, que descreve precisamente o papel retórico dos paradoxos no discurso de Rousseau:
Ninguém negaria, é verdade, que a vida em sociedade exige restrições da liberdade de cada indivíduo, para torná-la compatível com a liberdade dos demais. O que surpreende na afirmação de Rousseau não é que coerções devam ser impostas, mas que sejam elas, essencialmente, que tornam o homem livre, como Rousseau afirma ao final da passagem citada.
Antes de iniciar a discussão, parece-me oportuno mencionar uma passagem do livro de Salinas Fortes, Paradoxo do espetáculo, que descreve precisamente o papel retórico dos paradoxos no discurso de Rousseau:
"a obra [de] Rousseau não se propõe como versão adequada do absoluto. Estamos diante de um conjunto de dispositivos de medida e ao lado de numerosos procedimentos retóricos de combate, dos quais o ‘paradoxo’, que consiste justamente numa composição, junção de opostos, é o mais significativo. O paradoxo contra a doxa ou contra o preconceito: eis aí no plano da escrita a palavra de ordem. O paradoxo, ao nível do próprio texto, é um curto-circuito da representação linear. Mais precisamente: trata-se de combater especificamente os ‘preconceitos’ da casta filosófica ou o preconceito do saber discursivo."[8]
Proponho extrair dessa passagem um guia metodológico: levar extremamente a sério as afirmações do autor que nos chocam ou causam desconforto, ao invés de varrê-las para baixo do tapete para obter uma leitura mais palatável. De fato, ignorar essas afirmações desconfortáveis seria descaracterizar o autor que declarou, no Emílio, preferir ser “um homem de paradoxos do que um homem de preconceitos”. Assim, é exatamente ali onde o paradoxo se manifesta com toda sua força que devemos estar mais atentos para a lição que o autor deseja nos transmitir, desafiando os preconceitos de sua época que, em boa medida, continuam sendo nossos próprios preconceitos.
Se quisermos, então, aprofundar nossa compreensão da forma pela qual Rousseau concebe a liberdade, é nos paradoxos envolvidos em suas discussões do assunto que devemos prioritariamente nos concentrar. Podemos falar aqui de paradoxos da liberdade, no plural, porque me parece haver pelo menos dois: um que é próprio da filosofia política de Rousseau e que constitui o objeto desta apresentação; e um segundo, de natureza mais geral, que envolve a difícil conciliação das doutrinas políticas fortemente coletivistas de Rousseau com sua apaixonada defesa do homem solitário e independente, senhor de sua imaginação e livre das injunções da vida em sociedade, que ele desenvolve nas Confissões e nos Devaneios do caminhante solitário. Não há como deixar de aproximar a figura do caminhante solitário, ou do solitário das Confissões e da terceira carta a Malesherbes ao personagem do “homem natural” do Segundo Discurso. Algumas implicações da noção rousseauniana de liberdade natural são levantadas no apêndice ao final desta apresentação, redigido por Renato Moscateli.
Proponho extrair dessa passagem um guia metodológico: levar extremamente a sério as afirmações do autor que nos chocam ou causam desconforto, ao invés de varrê-las para baixo do tapete para obter uma leitura mais palatável. De fato, ignorar essas afirmações desconfortáveis seria descaracterizar o autor que declarou, no Emílio, preferir ser “um homem de paradoxos do que um homem de preconceitos”. Assim, é exatamente ali onde o paradoxo se manifesta com toda sua força que devemos estar mais atentos para a lição que o autor deseja nos transmitir, desafiando os preconceitos de sua época que, em boa medida, continuam sendo nossos próprios preconceitos.
Se quisermos, então, aprofundar nossa compreensão da forma pela qual Rousseau concebe a liberdade, é nos paradoxos envolvidos em suas discussões do assunto que devemos prioritariamente nos concentrar. Podemos falar aqui de paradoxos da liberdade, no plural, porque me parece haver pelo menos dois: um que é próprio da filosofia política de Rousseau e que constitui o objeto desta apresentação; e um segundo, de natureza mais geral, que envolve a difícil conciliação das doutrinas políticas fortemente coletivistas de Rousseau com sua apaixonada defesa do homem solitário e independente, senhor de sua imaginação e livre das injunções da vida em sociedade, que ele desenvolve nas Confissões e nos Devaneios do caminhante solitário. Não há como deixar de aproximar a figura do caminhante solitário, ou do solitário das Confissões e da terceira carta a Malesherbes ao personagem do “homem natural” do Segundo Discurso. Algumas implicações da noção rousseauniana de liberdade natural são levantadas no apêndice ao final desta apresentação, redigido por Renato Moscateli.
2. O paradoxo
Voltemos então ao paradoxo da liberdade política, apresentado na passagem do final do Livro I d' O contrato social acima citada, em que Rousseau recomenda a coerção, pelo corpo político, daquele que se recusar a obedecer à vontade geral, acrescentando que isso equivale a “forçá-lo a ser livre”. Em que, exatamente, essa passagem nos incomoda[9]? Os filósofos políticos não negam que a vida em sociedade exige coerções e restrições da liberdade de seus membros; assim, para Hobbes, como vimos, os contratantes aceitam voluntariamente uma restrição de sua liberdade original em troca de uma garantia de sua segurança; para Locke, por sua vez, cada indivíduo aceita pautar sua liberdade por normas que a tornam compatível com a liberdade dos demais. Mas Rousseau, de sua parte, parece impor-se uma tarefa impossível de realizar, pois, enquanto Hobbes e Locke admitem que os indivíduos devem ter sua liberdade restringida em função dos objetivos e necessidades da vida social, Rousseau não quer que as coerções impostas pelo contrato social sejam vistas como restrições à liberdade mas, ao contrário, como o meio pelo qual se garante a existência de uma forma de associação em que cada um obedece apenas a si mesmo, permanecendo assim integralmente livre.
Existem diversas maneiras de tentar resolver ou pelo menos minorar o paradoxo. Uma delas é observar que, se eu desejo os benefícios advindos de uma vida em uma sociedade estável, devo desejar também os meios pelos quais essa estabilidade é conseguida, o que inclui aceitar o estabelecimento de sanções penais que devem aplicar-se a todos e, conseqüentemente, também a mim mesmo. Assim, se eu discordo de uma certa lei, enquanto “expressão da vontade geral”, devo ainda assim cumpri-la e, se me recusar, serei coagido a fazê-lo, e essa coação está em princípio de acordo com minha vontade inicial que deu seu consentimento ao princípio de universalidade da qual ela proveio.
Mas o que esse raciocínio não consegue ocultar é que, sempre que os interesses individuais estiverem em desacordo com as determinações legais, estas irão inevitavelmente aparecer aos olhos dos envolvidos como restrições a sua liberdade. Para evitar a natural simpatia induzida pela costumeira imagem do indivíduo indefeso oprimido pelo poder do Estado, pensemos antes em banqueiros, grandes proprietários rurais e grandes empresários que podem ver-se obrigados a cumprir determinações legais das quais prefeririam estar isentos; e, ainda que seu cumprimento resulte de um cálculo que avalie os custos e benefícios a longo prazo das alternativas de cumprir a lei ou enfrentar as sanções, é certo que, sentindo-se forçados a cumpri-la, eles dificilmente concordarão com Rousseau que se tornaram “mais livres” por isso.
Uma forma mais eficiente de tratar o paradoxo é partir da importante distinção que Rousseau estabelece entre submeter-se à vontade de um homem, ou de um grupo particular de homens e submeter-se à vontade geral, a vontade do corpo político como um todo. O ponto foi apresentado com clareza na oitava das Cartas escritas da montanha:
Existem diversas maneiras de tentar resolver ou pelo menos minorar o paradoxo. Uma delas é observar que, se eu desejo os benefícios advindos de uma vida em uma sociedade estável, devo desejar também os meios pelos quais essa estabilidade é conseguida, o que inclui aceitar o estabelecimento de sanções penais que devem aplicar-se a todos e, conseqüentemente, também a mim mesmo. Assim, se eu discordo de uma certa lei, enquanto “expressão da vontade geral”, devo ainda assim cumpri-la e, se me recusar, serei coagido a fazê-lo, e essa coação está em princípio de acordo com minha vontade inicial que deu seu consentimento ao princípio de universalidade da qual ela proveio.
Mas o que esse raciocínio não consegue ocultar é que, sempre que os interesses individuais estiverem em desacordo com as determinações legais, estas irão inevitavelmente aparecer aos olhos dos envolvidos como restrições a sua liberdade. Para evitar a natural simpatia induzida pela costumeira imagem do indivíduo indefeso oprimido pelo poder do Estado, pensemos antes em banqueiros, grandes proprietários rurais e grandes empresários que podem ver-se obrigados a cumprir determinações legais das quais prefeririam estar isentos; e, ainda que seu cumprimento resulte de um cálculo que avalie os custos e benefícios a longo prazo das alternativas de cumprir a lei ou enfrentar as sanções, é certo que, sentindo-se forçados a cumpri-la, eles dificilmente concordarão com Rousseau que se tornaram “mais livres” por isso.
Uma forma mais eficiente de tratar o paradoxo é partir da importante distinção que Rousseau estabelece entre submeter-se à vontade de um homem, ou de um grupo particular de homens e submeter-se à vontade geral, a vontade do corpo político como um todo. O ponto foi apresentado com clareza na oitava das Cartas escritas da montanha:
"É inútil querer confundir a independência e a liberdade. Essas duas coisas são tão diferentes que até mesmo se excluem. Quando cada um faz o que bem quer, faz-se freqüentemente o que desagrada aos outros e isso não se chama um Estado livre. A liberdade consiste menos em fazer sua vontade do que em não ser submetido à vontade de outro; ela consiste ainda em não submeter a vontade de outro à nossa. [...] Não conheço vontade verdadeiramente livre que não seja aquela à qual ninguém tem o direito de opor resistência; na liberdade comum, ninguém tem o direito de fazer aquilo que a liberdade de um outro o proíbe de fazer, e a verdadeira liberdade nunca é destrutiva em relação a si mesma. Assim, a liberdade sem a justiça é uma verdadeira contradição, pois, não importa o que se pense, tudo constrange na execução de uma vontade desordenada.
Não há, pois, liberdade sem leis, nem onde alguém esteja acima das leis: pois até mesmo no estado de natureza o homem só é livre de acordo com a lei natural que comanda a todos. Um povo livre obedece, mas não serve."[10]
Estas reflexões são de grande importância para temperar o impacto da problemática passagem d' O contrato social que estamos discutindo. Se ser livre é estar imune à interferência arbitrária de sujeitos particulares, é fácil aceitar que o sistema de coerções, ao impedir que qualquer particular se coloque acima da lei, atua verdadeiramente como garantia essencial da liberdade de cada um dos membros da sociedade. De fato, Rousseau já havia mencionado brevemente essa justificativa na própria passagem citada, quando afirmou que sua “coerção libertadora” é a “condição que produz o engenho e o funcionamento da máquina política e que é a única capaz de tornar legítimos os compromissos civis, os quais, sem ela, seriam absurdos, tirânicos e sujeitos aos maiores abusos.”[11]
Mais uma vez, no entanto, podemos não nos sentir plenamente convencidos. Se nossos interesses pessoais estão sendo contrariados e se somos forçados a uma ação que não está de acordo com o que concebemos como nossa melhor opção, que diferença faz que a coação provenha de um grupo privado ou de um poder público? E que dizer dos casos mais drásticos, em que Rousseau literalmente afirma que aquele que o governante condena à morte deve aceitar sem resistência essa condenação, com base nos próprios termos d' O contrato social (Livro II, cap. 5) ou, em menor grau, quando o Estado o convoca para lutar em defesa da pátria em condições desesperadoras que não autorizam a esperar sucesso ou sobrevivência?
Mais uma vez, no entanto, podemos não nos sentir plenamente convencidos. Se nossos interesses pessoais estão sendo contrariados e se somos forçados a uma ação que não está de acordo com o que concebemos como nossa melhor opção, que diferença faz que a coação provenha de um grupo privado ou de um poder público? E que dizer dos casos mais drásticos, em que Rousseau literalmente afirma que aquele que o governante condena à morte deve aceitar sem resistência essa condenação, com base nos próprios termos d' O contrato social (Livro II, cap. 5) ou, em menor grau, quando o Estado o convoca para lutar em defesa da pátria em condições desesperadoras que não autorizam a esperar sucesso ou sobrevivência?
Mesmo para os agentes que se pautam exclusivamente pelo seu interesse pessoal (e para os filósofos políticos liberais que dão expressão sistemática a essa posição), nada haveria de problemático em aceitar que os homens se sujeitem a um sistema de sanções que delimite sua esfera de liberdade, desde que essa limitação seja feita em nome da eficácia do próprio sistema em que seus interesses pessoais de médio e longo prazo são perseguidos; ou seja, desde que essa limitação possa ser racionalmente justificada em nome dos benefícios que dela resultam para os próprios agentes individuais e sua esfera privada de interesses. O que lhes parece, porém, especialmente alarmante na afirmação de Rousseau é o fato de que um apelo à própria liberdade esteja servindo de justificativa para a limitação da liberdade, e que a total sujeição do indivíduo à coletividade seja apresentada como sua libertação, com o termo “liberdade” orwellianamente empregado para designar seu oposto, a mais flagrante tirania. Essas são as considerações que usualmente apóiam a caracterização de Rousseau como autor “totalitário”.
3. Liberdade positiva e negativa
Mas – poder-se-ia dizer – tudo isso é um equívoco, porque se está tentando aplicar a Rousseau uma concepção de liberdade que não é a dele. Rousseau teria, supostamente, um conceito “diferente” de liberdade; e se chegássemos a entender esse conceito, suas afirmações deixariam de soar problemáticas.A doutrina de que há duas concepções distintas de liberdade tem sua origem em Benjamin Constant, com seu contraste entre a “liberdade dos antigos” e a “liberdade dos modernos”, e tornou-se influente na filosofia política recente desde que Isahia Berlin a reformulou extensamente em seu artigo “Two Concepts of Liberty”[12].
Haveria, então, de um lado, a chamada “liberdade negativa”, entendida como simples ausência de impedimentos ao exercício da vontade, e a idéia, aqui, é que somente a presença de alguma coisa (um obstáculo, um impedimento, um ato coercitivo) é capaz de retirar a liberdade de um agente. Na ausência de todo impedimento, um agente é e permanece livre, e isso é tudo que deve ser levado em conta, nessa perspectiva, para avaliar sua liberdade.
Por outro lado, teóricos da “liberdade positiva” compreendem grosso modo a liberdade como a posse de condições que permitam alcançar um dado objetivo (obter algo, tornar-se algo). Neste caso, o determinante crucial para a existência de liberdade de um agente é a presença de condições que lhe permitam obter os fins desejados. Conseqüentemente, essas duas noções podem também ser explicadas dizendo-se que, no primeiro sentido (liberdade negativa), um agente livre é o que está livre de coerções, impedimentos, etc. e, no segundo sentido (liberdade positiva), o que está livre para alcançar tal e tal coisa, tornar-se tal e tal coisa, etc.
Uma proposta como essa pode parecer à primeira vista atraente pela promessa de ajudar a compreender e classificar as diferenças entre os teóricos da política na forma de entender a liberdade[13]. Mas, embora a caracterização seja simples, grandes dificuldades surgem quando se tenta aprofundar as distinções em casos concretos e, embora o esquema possa dar ensejo a muitos trabalhos acadêmicos e projetos voltados para estabelecer se, por exemplo, Locke é um defensor da liberdade positiva ou da liberdade negativa, o fato é que essa distinção foi considerada mal-fundada por um crítico como Gerald McCallum[14], e, de fato, para ele, obscurece nossa compreensão da noção de liberdade.
Mas em que essa distinção nos ajudaria quanto ao problema que estamos investigando? Vamos admitir que Rousseau tenha uma noção diferente de liberdade, que ele seja um proponente da chamada “liberdade positiva”, o que isso efetivamente nos permite resolver? A pergunta que permanece é por que, afinal, essa concepção de liberdade seria mais apropriada, ou “mais verdadeira” que a outra, e quais seriam os critérios para decidir essa questão. E os adeptos da visão liberal mais uma vez se apressarão a denunciar a perversidade que dá o nome de liberdade a algo que está bem longe dela e que autoriza intervir na forma como as pessoas decidem administrar suas vidas e suas propriedades.
MacCallum, de sua parte, tem uma proposta interessante que parece útil para resolver o problema no qual estamos envolvidos. Ao invés de supor que há duas distintas concepções de liberdade, ele propõe que há uma única concepção, e que as chamadas “liberdade negativa” – que relaciona um agente a um sistema de coerções ou impedimentos (“livre de ...”) – e “liberdade positiva” – que relaciona um agente a um conjunto de objetivos que ele deve estar municiado para alcançar (“livre para ...”) – são apenas formas parciais e enviesadas de considerar uma noção que envolve conjuntamente estes três aspectos: (1) o agente, (2) o sistema de coerções e (3) o conjunto de objetivos que ele deve ter condições de alcançar. Assim, em vez de considerar separadamente duas relações binárias “S está livre de x” e “S está livre para (alcançar) y”, a expressão completa da noção de liberdade deve envolver uma relação entre três termos: “S está livre de x para alcançar y”.
Qual a vantagem dessa mudança de enfoque conceitual? A principal delas é o fato de que esses três termos podem agora ser analisados de maneira inter-relacionada. Por exemplo, a decisão sobre o que constitui ou não uma coerção passa a depender de um sistema de objetivos dados. Imposições legais como a obrigatoriedade de que crianças freqüentem a escola, ou a proibição do uso de drogas, ou da posse de armas, etc., podem não mais aparecer como coerções, na medida em que os membros de uma sociedade considerem essas exigências como meios indispensáveis para alcançar um certo sistema de fins visados[15].
Reciprocamente, os objetivos que as pessoas na comunidade política devem e podem almejar podem ser hierarquizados e colocados em relações de dependência mútua, de modo que, por exemplo, alcançar um desenvolvimento intelectual e moral pode ser visto como necessitando o atendimento prévio de necessidades mais básicas de alimentação, moradia e segurança; portanto, a falta dessas condições passa a ser entendida como uma autêntica coerção à qual algumas pessoas podem estar submetidas. Temos aqui então, um caso em que é a ausência de algo que constitui uma coerção, contrariamente à máxima da liberdade negativa de que só uma presença pode constituir-se em coerção à liberdade.
Por fim, a própria noção do que é um agente irá interferir na análise dos dois outros termos da relação. Enquanto a concepção liberal ortodoxa de um agente identifica-o ao indivíduo isolado e auto-interessado de Hobbes e Locke, movido por seus apetites e guiado por sua razão, outra concepções tornam-se possíveis: a esfera do agente pode ser reduzida à cidadela interna das suas decisões racionais, com exclusão de seus apetites irrefletidos, de tal modo que, por exemplo, alguém que racionalmente decidiu parar de fumar, não estaria agindo livremente se cedesse ao desejo de acender um cigarro, e, paradoxalmente, estaria sendo “ajudado a ser livre” se for impedido de fumar em certos locais pela legislação ou pressão pública.
Uma proposta como essa pode parecer à primeira vista atraente pela promessa de ajudar a compreender e classificar as diferenças entre os teóricos da política na forma de entender a liberdade[13]. Mas, embora a caracterização seja simples, grandes dificuldades surgem quando se tenta aprofundar as distinções em casos concretos e, embora o esquema possa dar ensejo a muitos trabalhos acadêmicos e projetos voltados para estabelecer se, por exemplo, Locke é um defensor da liberdade positiva ou da liberdade negativa, o fato é que essa distinção foi considerada mal-fundada por um crítico como Gerald McCallum[14], e, de fato, para ele, obscurece nossa compreensão da noção de liberdade.
Mas em que essa distinção nos ajudaria quanto ao problema que estamos investigando? Vamos admitir que Rousseau tenha uma noção diferente de liberdade, que ele seja um proponente da chamada “liberdade positiva”, o que isso efetivamente nos permite resolver? A pergunta que permanece é por que, afinal, essa concepção de liberdade seria mais apropriada, ou “mais verdadeira” que a outra, e quais seriam os critérios para decidir essa questão. E os adeptos da visão liberal mais uma vez se apressarão a denunciar a perversidade que dá o nome de liberdade a algo que está bem longe dela e que autoriza intervir na forma como as pessoas decidem administrar suas vidas e suas propriedades.
MacCallum, de sua parte, tem uma proposta interessante que parece útil para resolver o problema no qual estamos envolvidos. Ao invés de supor que há duas distintas concepções de liberdade, ele propõe que há uma única concepção, e que as chamadas “liberdade negativa” – que relaciona um agente a um sistema de coerções ou impedimentos (“livre de ...”) – e “liberdade positiva” – que relaciona um agente a um conjunto de objetivos que ele deve estar municiado para alcançar (“livre para ...”) – são apenas formas parciais e enviesadas de considerar uma noção que envolve conjuntamente estes três aspectos: (1) o agente, (2) o sistema de coerções e (3) o conjunto de objetivos que ele deve ter condições de alcançar. Assim, em vez de considerar separadamente duas relações binárias “S está livre de x” e “S está livre para (alcançar) y”, a expressão completa da noção de liberdade deve envolver uma relação entre três termos: “S está livre de x para alcançar y”.
Qual a vantagem dessa mudança de enfoque conceitual? A principal delas é o fato de que esses três termos podem agora ser analisados de maneira inter-relacionada. Por exemplo, a decisão sobre o que constitui ou não uma coerção passa a depender de um sistema de objetivos dados. Imposições legais como a obrigatoriedade de que crianças freqüentem a escola, ou a proibição do uso de drogas, ou da posse de armas, etc., podem não mais aparecer como coerções, na medida em que os membros de uma sociedade considerem essas exigências como meios indispensáveis para alcançar um certo sistema de fins visados[15].
Reciprocamente, os objetivos que as pessoas na comunidade política devem e podem almejar podem ser hierarquizados e colocados em relações de dependência mútua, de modo que, por exemplo, alcançar um desenvolvimento intelectual e moral pode ser visto como necessitando o atendimento prévio de necessidades mais básicas de alimentação, moradia e segurança; portanto, a falta dessas condições passa a ser entendida como uma autêntica coerção à qual algumas pessoas podem estar submetidas. Temos aqui então, um caso em que é a ausência de algo que constitui uma coerção, contrariamente à máxima da liberdade negativa de que só uma presença pode constituir-se em coerção à liberdade.
Por fim, a própria noção do que é um agente irá interferir na análise dos dois outros termos da relação. Enquanto a concepção liberal ortodoxa de um agente identifica-o ao indivíduo isolado e auto-interessado de Hobbes e Locke, movido por seus apetites e guiado por sua razão, outra concepções tornam-se possíveis: a esfera do agente pode ser reduzida à cidadela interna das suas decisões racionais, com exclusão de seus apetites irrefletidos, de tal modo que, por exemplo, alguém que racionalmente decidiu parar de fumar, não estaria agindo livremente se cedesse ao desejo de acender um cigarro, e, paradoxalmente, estaria sendo “ajudado a ser livre” se for impedido de fumar em certos locais pela legislação ou pressão pública.
Reciprocamente, a esfera do agente pode expandir-se para além do simples indivíduo isolado, de modo a internalizar e tornar genuinamente seus os interesses de toda uma coletividade ou grupo com que se identifique: sua comunidade, sua raça, sua religião, seu povo e nação. Não é necessário lembrar que operações de identificação deste último tipo estão na base das concepções comunitaristas e antiliberais, das quais o pensamento político de Rousseau é, na modernidade, o grande precursor.[16]Levando-se em conta esta rede de relações, pode-se realizar uma análise mais fecunda das diferenças essenciais entre os pensadores políticos. Ao invés de dividi-los em apenas dois campos estanques, temos uma variedade muito maior de aspectos a considerar. Autores políticos podem distinguir-se pela sua diferente concepção do que conta como coerção na vida política da sociedade, ou quanto ao valor relativo que atribuem aos diversos objetivos que as pessoas podem ou devem visar, ou quanto à possibilidade ou mesmo impossibilidade de hierarquizá-los objetivamente, ou de justificar a maior importância de uns frente a outros. E podem, por fim, distinguir-se quanto ao que conta como um agente a quem, genuinamente, se pode atribuir liberdade.
4. A noção de liberdade em Rousseau
De posse desses elementos, podemos esboçar os passos para uma abordagem do problema da liberdade em Rousseau que faça justiça à complexidade da questão e leve a sério o desafio que ele nos colocou com seu paradoxo. Deixando de lado a idéia de que Rousseau teria nos apresentado um novo conceito de liberdade, devemos dizer que Rousseau investigou mais profundamente que seus antecessores (e a maioria dos que o sucederam) as condições que devem presidir ao exercício da liberdade política de forma compatível com os requisitos da vida em sociedade. Assim, a posição de Rousseau com relação à liberdade só pode ser corretamente avaliada se levarmos a sério as severas exigências que devem ser atendidas por uma sociedade para que ela possa se organizar politicamente segundo os princípios d' O contrato social; exigências essas que, em nossas modernas sociedades – heterogêneas, fragmentadas e em permanente conflito interior –, não podem mais ser satisfeitas e nem sequer compreendidas, como mostram as reações, ora escandalizadas, ora contemporizadoras, que as palavras de Rousseau costumam despertar nos que abordam seu pensamento embebidos exatamente nos preconceitos que ele tentou trazer à luz com seus paradoxos retóricos.Diferentemente de Hobbes e Locke, que julgaram que problema da constituição de uma sociedade justa se resolveria automaticamente pela interação regrada dos interesses particulares de seus membros, Rousseau foi o primeiro filósofo moderno a fazer uma crítica profunda dessa suposição, a denunciar o tipo de sociedade a que, em suas previsões, o modelo liberal fatalmente conduziria, e a examinar as condições teoricamente necessárias para a formação de uma sociedade justa, mais igualitária[17] e solidária. Ao desmembrar, como fizemos aqui, a noção de liberdade em seus elementos constitutivos, torna-se possível montar um programa de investigação capaz de conduzir a uma compreensão mais fecunda da noção rousseauniana de liberdade e como ela se distingue de outras conceituações em cada um dos aspectos considerados: o que conta como coerção, quais são os objetivos que a sociedade deve garantir que seus membros alcancem, quem são os agentes que constituem o corpo político e como eles se identificam: homens isolados ou cidadãos? E, em cada uma dessas questões, a comparação com os preconceitos de sua época – que são, como se propôs, os preconceitos de que continuamos a compartilhar pela hegemonia do pensamento liberal-iluminista nas sociedades ocidentais desde o século XVIII até nossos dias – auxiliará a entender melhor a verdadeira República imaginada, contra seu tempo e o nosso, pelo cidadão de Genebra.
Apêndice: Instinto X Liberdade no Estado de Natureza
Renato Moscateli
Para os leitores de Rousseau, habituados à constante presença em seus escritos da expressão “liberdade natural”, a relação entre natureza e liberdade pode afigurar-se como possuindo um significado bastante inequívoco, em especial quando se pensa no Discurso sobre as origens da desigualdade, no qual os inícios da história conjetural do homem parecem evocar a imagem de um ser livre por excelência, e as conseqüências da lamentável perda desta condição ancestral perpassam, de vários modos, as reflexões que motivaram os textos posteriores de Rousseau. Não obstante, é justamente um deles que desafia a clareza dessa relação. N' O contrato social, ao falar sobre os resultados que o pacto de associação civil traz a quem dele participa, o autor diz que entre eles se encontra a liberdade moral, “única a tornar o homem verdadeiramente senhor de si mesmo, porque o impulso do puro apetite é escravidão, e a obediência à lei que se prescreveu a si mesmo é liberdade.”[18] Tomando-se isto como uma chave interpretativa para adentrar os sentidos do termo liberdade no pensamento de Rousseau, pode-se levantar algumas questões instigantes a respeito da natureza do homem selvagem e das características de suas ações, tais como foram descritas pelo filósofo. Com isto, não se pretende lidar aqui com as implicações propriamente jurídicas do conceito de liberdade, tais como elas aparecem no contexto dos princípios do direito político, mas apenas do que se poderia chamar de “dimensão metafísica” desse conceito, onde o que importa é sua oposição à idéia de instinto.
No Segundo Discurso, lê-se que “O homem selvagem, abandonado pela natureza unicamente ao instinto, (...) começará, pois, pelas funções puramente animais: perceber e sentir será seu primeiro estado, que terá em comum com todos os outros animais.”[19] Privado de toda espécie de luzes, suas paixões originam-se no simples impulso da natureza, e seus desejos não ultrapassam suas necessidades físicas. Vagando em solidão pelos bosques, independente do auxílio de seus semelhantes para sobreviver, o selvagem deseja somente o que pode alcançar de acordo com os limites físicos de sua capacidade de agir, não havendo, então, conflito entre querer e poder. O amor-de-si, que é a paixão fundamental, apenas leva o homem a buscar sua autoconservação, de acordo com o impulso natural que orienta a todos os seres vivos. Esse homem está bem adaptado ao ambiente em que vive, e isto em virtude de uma “providência muito sábia” que dosou o desenvolvimento das potencialidades humanas para que elas não se tornassem inúteis por serem extemporâneas. O homem, diz Rousseau, “encontrava unicamente no instinto todo o necessário para viver no estado de natureza; numa razão cultivada só encontra aquilo de que necessita para viver em sociedade.”[20]
Esta oposição entre natureza/instinto de um lado, e sociedade/razão de outro, conduz a um segundo ponto. A liberdade, que consiste em dar uma lei a si mesmo, ou, em outras palavras, na “criação de padrões de comportamento para si”[21], exige uma certa capacidade de reflexão ao se fazer escolhas. No caso do homem selvagem, as decisões são configuradas dentro dos horizontes de seus instintos, os quais, de acordo com Rousseau, levam-no a sobreviver nutrindo-se das abundantes produções da terra. Se não fosse assim, se ele usasse alguma reflexão para agir, ainda se poderia referir a ele como “homem natural”, uma vez que o Segundo Discurso descreve a atividade da reflexão como um elemento não inerente ao homem no estado de natureza?
No entanto, não se pode negar que Rousseau diferencia o homem dos outros animais pela qualidade de agente livre que este adquire. Somente ele é capaz de se afastar da regra que o instinto lhe prescreve, mesmo para seu próprio prejuízo: “A natureza manda em todos os animais, e a besta obedece. O homem sofre a mesma influência, mas considera-se livre para concordar ou resistir, e é sobretudo na consciência dessa liberdade que se mostra a espiritualidade de sua alma, pois a física de certo modo explica o mecanismo dos sentidos e a formação das idéias, mas no poder de querer, ou antes, de escolher e no sentimento desse poder só se encontram atos puramente espirituais que de modo algum serão explicados pelas leis da mecânica.”[22] Ora, o motivo dessa distinção essencial ao homem, ainda segundo Rousseau, é o dom da perfectibilidade, que permite o desenvolvimento das capacidades intelectuais humanas para muito além de sua condição original. Gradativamente, confrontando-se com os obstáculos colocados pelas mais diversas circunstâncias diante da satisfação de suas necessidades, pela série de causas estranhas ao estado de natureza mencionadas no Segundo Discurso, o homem aprende a contorná-los de muitas formas diferentes, e esse é o caminho que faz com que através dos séculos desabrochem suas luzes. Nesse sentido, quando diz que o homem se reconhece livre para aceitar ou negar os comandos da natureza, ou seja, que ele tem consciência dessa liberdade, Rousseau está falando de um ser que já se distanciou muito do homem natural e que alcançou um estágio em pode realizar atos puramente espirituais[23].
Conseqüentemente, há uma diferença de suma importância a ser considerada: os outros animais não têm como ultrapassar suas limitações, mas o homem sim, graças à perfectibilidade. Caso ele pudesse permanecer selvagem para sempre, sua sujeição ao instinto lhe bastaria[24]. Ele persistiria sem entendimento, razão ou liberdade; seria, por tanto tempo quanto andasse sobre a terra, uma criatura “subumana”[25]. Entretanto, ele é impulsionado por fatores externos e por sua particularidade essencial a abandonar esse estado, deixando sua solidão para conviver com seus semelhantes. Logo, ele pode elevar-se até a liberdade, que incorpora a razão e a moralidade, e é o ponto mais alto de seu progresso espiritual, confirmando o potencial que lhe foi dado pelo Criador. Na medida em que ele chega a tomar suas próprias decisões, lê-se no Emílio, “tudo o que faz livremente não entra no sistema ordenado da Providência e a esta não pode ser imputado”[26], visto que é um desvio deliberado quanto ao que prescreve a ordem natural. Tal desvio possibilita que os homens construam sua própria história, cujos desdobramentos são de sua inteira responsabilidade.
[2] Dentre muitos exemplos, ver Steven Pinker, The Blank Slate. Penguin Press, 2002, que faz farto uso dessa oposição em seu capítulo inicial e, incidentalmente, toma o partido de Hobbes contra Rousseau.
[3] As acusações remontam já a Benjamin Constant, que declarou que Rousseau, com sua obra, deu “o mais terrível suporte a todos os tipos de despotismo” (Principes de politique, 1806). O rol dos acusadores é grande, cite-se, mais modernamente, Jacob Talmon (The Origins of Totalitarian Democracy, 1952) e Isahia Berlin (Freedom and Its Betrayal: Six Enemies of Human Liberty, ensaios redigidos em 1952) para quem Rousseau é “o mais sinistro e o mais formidável inimigo da liberdade em toda história do pensamento moderno”. Entre autores brasileiros, ver os importantes trabalhos de Roque Spencer Maciel de Barros (O fenômeno totalitário, esp. p. 555-563) e Gilda Naécia Maciel de Barros (Platão, Rousseau e o Estado Total).
[4] ROUSSEAU, J.-J. Du contrat social. Livro I cap. 1, Œuvres complètes, vol. III, Paris: Gallimard, 1966, p. 351, minha tradução.
[5] Note-se que a associação é entre proprietários de bens, o que desmente que Rousseau tenha sido, como as vezes se diz, um proponente da abolição da propriedade privada.
[6] ROUSSEAU, J.-J. Du contrat social. Livro I cap. 6, Œuvres complètes, vol. III, Paris: Gallimard, 1966, p. 360, minha tradução.
[7] ROUSSEAU, J.-J. Du contract social. Livro I cap. 7, Œuvres complètes, vol. III, Paris: Gallimard, 1966, p. 364, minha tradução.
[8] Salinas Fortes, L. R. Paradoxo do espetáculo. São Paulo: Discurso Editorial, 1997, p. 93.
[9] Compare-se com a seguinte passagem de Kant que diz essencialmente a mesma coisa embora sem a provocativa retórica da passagem de Rousseau: “A resistência que frustra o impedimento de um efeito promove esse efeito e é conforme a ele. Ora, tudo que é injusto é um obstáculo à liberdade de acordo com leis universais. Mas a coerção é um obstáculo ou resistência à liberdade. Conseqüentemente, se um certo uso da liberdade é ele próprio um obstáculo à liberdade de acordo com leis universais (isto é, é injusto), a coerção que a isso se opõe (como um impedimento de um obstáculo à liberdade) é conforme à liberdade de acordo com leis universais (isto é, é justo).” KANT, I. Metafísica dos costumes, Trad. Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2003. p. 77-78.
[10] ROUSSEAU, J.-J. Cartas escritas da montanha. Trad. Maria Constança Perez Pissarra e Maria das Graças de Souza. São Paulo: Editora UNESP, 2006. p. 371-372.
[11] ROUSSEAU, J.-J. Du contract social. Livro I cap. 7, Œuvres complètes, vol. III, Paris: Gallimard, 1966, p. 364, minha tradução.
[12] BERLIN, Isahia, Two Concepts of Liberty (1958) In Four Essays on Liberty, Oxford University Press, 1969.
[13] Berlin, de fato, faz uma classificação dos autores: de um lado os “liberais” como Occam, Erasmo, Hobbes, Locke, Bentham, Benjamin Constant, Stuart Mill, Tocqueville, Jefferson, Burke, Paine entre os proponentes da liberdade negativa. No campo oposto, os “intervencionistas”: Platão, Epiteto, S. Ambrósio, Montesquieu, Espinosa, Rousseau, Kant, Hegel, Herder, Fichte, Marx, Comte, etc.
[14] MacCALLUM, Jr., Gerald C. Negative and Positive Freedom. The Philosophical Review v.76 n.3 (Jul. 1967) p. 312-344.
[15] Nas palavras de Locke: “não merece o nome de confinamento uma cerca que só nos protege de pântanos e precipícios”; “a função da lei não é abolir ou restringir, mas preservar e ampliar a liberdade (2º Tratado sobre o Governo, seção 57).
[16] Cf. COHLER, Anne M. Rousseau and Nationalism. Nova York: Basic Books, 1970.
[17] Note-se que, para Rousseau, a igualdade não é um valor por si mesma, mas é buscada porque a existência de grandes disparidades econômicas faz com que a vontade de grupos particulares termine por se impor à vontade geral, destruindo assim as condições para o exercício da liberdade. A liberdade plena é o objetivo final, e não há, portanto, coerência na usual alegação liberal de que Rousseau estaria disposto a sacrificá-la em nome de metas igualitárias.
[18] ROUSSEAU, J.-J. Du contract social. Livro I cap. 8, Œuvres complètes, vol. III, Paris: Gallimard, 1966, p. 365.
[19] ROUSSEAU, J.-J. Discours sur l’origine de l’inégalité, Œuvres complètes, vol. III, Paris: Gallimard, 1966, p. 142.
[20] ROUSSEAU, J.-J. Discours sur l’origine de l’inégalité, Œuvres complètes, vol. III, Paris: Gallimard, 1966, p. 152.
[21] A expressão é de Anne M. Cohler. Cf. Rousseau and Nationalism. Nova York: Basic Books, 1970.
[22] ROUSSEAU, J.-J. Discours sur l’origine de l’inégalité, Œuvres complètes, vol. III, Paris: Gallimard, 1966, p. 141-142.
[23] Na Carta a Christophe de Beaumont, ao retomar suas idéias sobre o homem selvagem, Rousseau declara que “a consciência só se desenvolve e age em conjunto com as luzes do homem. É só graças a essas luzes que ele atinge um conhecimento da ordem, e é só quando a conhece que sua consciência leva-o a amá-la. A consciência, portanto, é nula no homem que ainda nada comparou e que não viu suas relações. Nesse estágio, o homem conhece apenas a si mesmo; não vê seu bem-estar como estando em oposição ou em conformidade ao de mais ninguém; ele não odeia nem ama nada; limitado unicamente ao instinto físico, ele é nulo, é estúpido – é isso o que eu fiz ver em meu Discurso sobre a desigualdade.” In: ROUSSEAU, J.-J., Œuvres complètes, vol. IV, Paris: Gallimard, 1969, p. 936.
[24] No Segundo Discurso, descrevendo as condições praticamente imutáveis nas quais, durante eras sucessivas, o homem selvagem viveu, Rousseau sintetiza dessa forma suas características: “Então não havia nem educação, nem progresso; as gerações se multiplicavam inutilmente e, partindo cada uma sempre do mesmo ponto, desenrolavam-se os séculos com toda a grosseria das primeiras épocas; a espécie já era velha e o homem continuava sempre criança.” (Op. cit., p. 160) Compare-se esta descrição com aquela referente ao animal, que, “ao fim de alguns meses, é o que será por toda a vida, e sua espécie, no fim de milhares de anos, o que era no primeiro ano desses milhares.” (Op. cit., p. 142).
[25] Cf. STRAUSS, Leo. Droit naturel et histoire. Trad. Monique Nathan e Éric de Dampierre. Paris: Flammarion, 1986. p. 234.
[26] ROUSSEAU, J.-J. Émile ou de l’éducation, Œuvres complètes, vol. IV, Paris: Gallimard, 1969, p. 587.
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